19 de fev. de 2011

A viagem infindável de Gulliver

Um dos lançamentos deste verão nos cinemas é o filme “As viagens de Gulliver”, baseado no livro homônimo do irlandês Jonathan Swift (1667-1745). O filme é uma releitura de alguns trechos do livro com uma linguagem moderna e mais atrativa para o público jovem e adolescente. O que parece normal, visto que a obra sempre foi associada a um mundo - ou mundos - fantásticos, surreais, numa narrativa surpreendente do início ao fim. George Orwell, atuor de A revolução dos bichos e 1984 disse ser "impossível se cansar dele"; Orwell afirmou ainda: "Se eu tivesse que fazer uma lista com os seis livros que deveriam ser preservados quando todos os demais fossem destruídos, com certeza colocaria As Viagens de Gulliver nela". Com este aval do grande escritor inglês, o livro de Swift faz por merecer seu prestígio e suas idéias que continuam atuais.

Nele o protagonista viajante Lemuel Gulliver narra suas aventuras pelo mundo (detalhe para o nome Gulliver que vem de gullible que em inglês significa crédulo e talvez a credulidade seja um ingrediente indispensável para ter um contato  mais profundo com outros povos e suas culturas). O texto é cheio de descrições referentes aos países por onde Gulliver passa, não apenas externas, mas com deduções do caráter dos habitantes que o narrador faz questão de expor. Em cada parada, há um povo com suas peculiaridades, tanto de caráter quanto em seu aspecto físico, indo desde gigantes, criaturas em forma humana minúsculas, passando pelos habitantes da ilha flutuante até chegar à terra dos cavalos falantes. E o mais impressionante é que todo esse universo de estranheza que parece algo distante, uma realidade de outra dimensão, não é nada mais nada menos do que o reflexo da nossa própria realidade humana, inclusive a contemporânea.

O pastor Jonathan Swift nasceu num período conturbado da história da Inglaterra que estendia seus domínios sobre a Irlanda. A preocupação primordial dele era contra a injustiça, a impiedade. Ele queria criticar as instituições e referenciais da elite de então. Teve relações com o poder e conhecia todas as artimanhas que circundavam os donos do mundo com suas hipocrisias, suas pompas, sua burocracia e indiferença para com o cidadão. Parece bastante pretensão para um livro que sempre é citado como um 'livro para crianças', devido à linguagem fluente, a descrição minuciosa, além do humor que As Viagens de Gulliver traz. 

Como recurso para descrever as injustiças de seu tempo, as incongruência do que é dito nos gabinetes e o que é praticado de verdade na vida pública, a cegueira da sociedade, Swift usou uma estratégia - escrever um livro com formato de livro de viagens (esses eram moda então). Cada país onde o capitão Gulliver para não é senão o próprio país de Swift e suas complexidades; para nomear seus lugares imaginários, Swift usou nomes codificados para dificultar a identificação com situações, lugares e pessoas de seu tempo, o que lhe causaria problemas se o fizesse de forma direta. Liliput (a terra dos habitantes minúsculos) é um referencial à pequenez de caráter de homens opressores e demagogos. Brobdingnag, é o lugar onde ocorre o inverso de Liliput - ali ele é o minúsculo, sendo manipulado pelos habitantes do lugar como se fosse um fantoche, carregado de um lado para outro dentro de uma caixa. 

Prosseguindo sua viagem, Gulliver chega à Laputa, a ilha flutuante dos pensadores, músicos e cientistas, onde só é possível chegar através de uma corda pendurada. Talvez Laputa se refira à Inglaterra, que dominava a Irlanda de Swift, causando-lhe empobrecimento pela cobrança de impostos - daí Laputa seria literalmente 'uma prostituta que arranca dinheiro alheio'. Em Laputa, os sábios são acompanhados por auxiliares que utilizam uma bexiga com pedrinhas dentro amarrada numa vara, que é chacoalhada toda vez que alguém se dirige a um destes sábios. Uma crítica impiedosa aos cientistas de então - e porque não a certos contemporâneos também  - com sua falta de visão ampla, com seu orgulho e desejo de prestígio,  com seu desdém para com os ramos de conhecimento que sejam diferentes dos seus. 

Em sua fase final, Gulliver relata a viagem à terra dos houyhnhnms (a pronúncia provável seria whinnims, imitando o relinchar eqüino), os cavalos filósofos. Gulliver fica admirado com sua inteligência, contrastando com a ignorância dos yahoos, seres descritos como semelhantes a homens, mas como corpo cheios de pelos e comportamento animalesco. Alguns autores associam os houyhnhnms a filósofos estóicos (o estoicismo prega a serenidade, a razão sobrepujando os sofrimentos do mundo); essa conclusão vem por causa da aversão de Swift ao estoicismo, sendo uma forma de ridicularizá-lo associando seus adeptos a  quadrúpedes inteligentes em seu livro. 

Todos esses lugares fantásticos, criados por Swift,  de habitantes impossíveis em situações surreais eram senão os próprios humanos e suas atitudes inconseqüentes e incoerentes de seu próprio país. Para realizar sua obra, o autor levou  a imaginação para outros lugares, num exercício de reflexão sobre seu tempo que perdurou com o passar dos anos. Isso porque continuamos nos mesmos erros do tempo de Swift e apesar dos avanços incontáveis nos diversos ramos do conhecimento humano, parece que regredimos em alguns aspectos; já em outras áreas nunca avançamos satisfatoriamente. Conhecer o mundo de Gulliver e seus personagens é viajar dentro de nós mesmos, num mundo que parece alheio, mas que é reconhecido no menor gesto ou pensamento de cada um de seus personagens.

Fontes:
As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift, Nova Cultural, São Paulo, 1996

30 de jan. de 2011

A minha 'cultura' me basta

O impasse em relação ao encerramento das atividades do Cine Belas Artes na Rua da Consolação, em São Paulo mostra o quanto desimportante é a cultura para o brasileiro. Não me refiro ao desprezo cultural ligado à população mais pobre - que na visão simplista dos cultos somente aprecia a 'cultura de massa'. Me refiro sim ao ideal de cultura como algo diletante, um estigma pessoal que ecoa por onde passa, uma cultura sem referencial social, pouco efetiva na vida cotidiana.

O Belas Artes, que apresenta filmes do circuito alternativo  é freqüentado por um público específico - o que aprecia filmes 'de arte', com orçamento baixo, também chamado de 'cinema de autor'. Uma pergunta que poderia ser feita é: onde estava esse público que aprecia os filmes deste e de outros cinemas alternativos quando estes começaram a dar prejuízo? (supostamente pela baixa receita de caixa, apesar de alguns afirmarem que 'a arte não é mercadoria', como se o artista vivesse de brisa). Onde estavam aqueles que fizeram passeata com nariz de palhaço contra o fechamento do cinema?

A cultura, essa coisa tão indescritível e tão abstrata nessa terra de cegos sempre foi um lustro imensurável para quem a tem e algo irrelevante no alheio, ou naquele que a busca de forma aprimorada, visando novos horizontes e novos referenciais. Quem tem cultura no Brasil sempre arrogou a si um direito inalienável, algo como 'hereditário' que, de  tão fatídico como o fator genético, possibilita certos conceitos como 'herdei a cultura de minha família...' ou 'cresci rodeado de livros, pois meu avô tinha uma biblioteca magnífica', entre outras frases de demonstram o pretenso 'DNA cultural' de quem as diz.

Imagino que os que protestam contra o fechamento do cinema são os mesmos que protestam contra o sucateamento da TV Cultura. Dirão alguns: 'É uma emissora indispensável para a difusão da cultura e educação, etc'. Uma afirmativa pouco sincera, pois esses que defendem a emissora, alimentam os canais a cabo dos grandes grupos. Alguns replicarão: 'Sim, mas é uma questão de escolha, vejo os dois, além do mais tenho uma cultura nata  e me preocupo com a população mais carente que não tem acesso à arte e à cultura'. É o argumento do 'minha cultura' ou 'meu pirão' primeiro. Fazem isso também em relação ao Belas.

Imagino ainda que os que protestam contra o fechamento do Belas Artes não estejam preocupados com o cinema em si e a impossibilidade de não mais assistirem aos filmes preferidos, mas sim estariam preocupados com a perda do status que ocorreria com o fechamento da sala. Afinal cult que é cult não basta em si mesmo, tem que aparecer e mostrar refinamento. Mas é preciso palco - no cinema de arte um bom lugar é a fila, para mostrar conhecimentos cinematográficos, incluindo semiótica, análise do discurso e simbolos psicanalíticos encontrados no último filme visto. Outro possível palco é a livraria, de preferência as da moda como a Fnac, onde é comum ver aquelas criaturas destilando cultura pelos corredores - geralmente um homem acompanhado de uma ou duas mulheres - que sempre tem um comentário sobre algum autor, apontando-o na prateleira e dizendo: "Eu vi  fulano quando estive em Paris e o cumprimentei!".

Como ex-freqüentador assíduo do Belas Artes e hoje já não tão assíduo assim,  lamento pelo desfecho de sua história, mas também lamento pela cegueira dos revoltados que, graças à sua  falta de noção de que cultura é mais do que apenas refinamento egocêntrico e brilho opaco da falta de originalidade,  carregam a própria derrota, produzida por um mecanismo fracassado de um sistema perverso que  foi subestimado por eles, por conveniência ou por indiferença.


Fonte
http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,em-sp-cine-belas-artes-pode-ganhar-sobrevida,666140,0.htm

2 de jan. de 2011

Um romântico vitorioso

"Sou homem". Com essa afirmativa o técnico do atual campeão brasileiro Fluminense, Muricy Ramalho,  define a si mesmo. Não é exatamente uma frase de auto-afirmação, mas uma resposta (de certo modo equivocada) para aqueles que classificam seu jeito de atuação como 'romântico' por dar prioridade ao fator humano, mesmo sob condições adversas e de falta de estrutura adequada, como foi o caso do time carioca. "A estrutura é importante, ajuda muito, mas são os homens é que fazem a diferença. Se o técnico não for bom, não adianta", disse ao conquistar o campeonato nacional. 

O aclamado técnico ao dizer que é 'homem' para fugir do rótulo de romântico, o faz talvez por desconhecimento do verdadeiro significado da palavra. Esse desconhecimento é geral entre nós. Somos influenciados pela mídia, cinema, televisão, além da indústria fonográfica que nos mostra o romantismo associado apenas a algo ligado aos sentimentos mais profundos de amor a uma pessoa, um sentimento que vence barreiras e idéias intransponíveis. Essa é uma idéia apenas parcial do ideal romântico, mas que tem sido  considerado como principal e único do que venha a ser o romantismo.

O romantismo surgiu no início do século 19 como resposta a nova sociedade que surgia na Europa, industrial, urbana e que impunha novas diretrizes que não satisfaziam plenamente a todos, pois  essa sociedade era por vezes injusta, desumana e renegava valores importantes para a humanidade até então. Daí nasce o movimento que teve sua maior importância na literatura - inclusive o romance  (livro com histórias em forma narrativa) surge nessa época. As principais características do romantismo eram a exaltação do 'eu', o  liberalismo, o sentimentalismo, o apreço pela natureza e um certo anarquismo. O Brasil teve importantes escritores românticos como Castro Alves, José de Alencar, Casimiro de Abreu entre outros. Seguindo o ideal romântico escreviam principalmente em verso e prosa os anseios sobre a pessoa amada de forma desbragada e pura, além de esboçarem reações contra o sistema opressor - no Brasil  o foco foi a escravidão, onde Castro Alves clamava por liberdade aos escravos em seus poemas.

A sociedade seguiu seu rumo e o movimento romântico murchou como 'uma rosa entre os seios da doce amada adormecida em sonhos belos'. Somos ainda em parte produto daquela época, conquistas sociais, científicas e tecnológicas nos distanciam daqueles tempos, mas o ideal romântico ainda resiste. Assim como nos primórdios do romantismo, vez por outra surge alguém que - ao lado de românticos mais convencionais que exaltam o amor -  deseja mudanças a seu modo, vencendo forças contrárias, idéias estabelecidas, instituições caducas e opressoras, usando para atingir suas metas ideais muitas vezes subestimados, por não fazerem parte das 'regras do jogo' em questão. Na sociedade contemporânea temos um complicado sistema de interesses intimamente ligados entre si e é mais conveniente ficarmos resignados e seguirmos um padrão mais racional de conduta. Essa é uma explicação para a força e o encantamento causados pelo romântico que exaltado contesta valores,  expondo os seus ideais como um novo combustível para a mudança almejada.  

Muricy Ramalho pode negar seu romantismo, por não ser sentimental e ser excessivamente franco em suas posições no lucrativo mundo do futebol, mas ele é um destes exaltados que fascinam a muitos que provavelmente não teriam o mesmo fôlego para difundir seus ideais mais fervorosos. O técnico tetra-campeão brasileiro, com três títulos pelo São Paulo e um pelo Fluminense pode ser classificado como um romântico 'vitorioso' (isso porque geralmente os românticos não são valorizados prioritariamente por metas e sim pelas suas trajetórias, como Pelé que é pouco lembrado pelos títulos,  mas exaltado pela carreira brilhante). E para atingir sua mais recente meta, Muricy deu um passo atrás, recusando o cargo de técnico da seleção brasileira, num gesto que poderia ser classificado como insensato por um profissional carreirista. Entretanto, ele sabia de seus objetivos e com técnica, trabalho e a boa intuição traçou sua história e a de seu time. O despojamento característico de Muricy em entrevistas coletivas que causa espanto nos mais pragmáticos, foi esquecido com a sua coroação como técnico campeão de um  time conhecido há tempos atrás apenas por lutar para não ser rebaixado para a segunda divisão. Um feito que somente uma mente romântica e exaltada poderia imaginar e atingir. Esse  homem - romântico - sabe o que faz.

22 de nov. de 2010

O conto de fadas de um mundo sem encanto

O anúncio do casamento de William, príncipe da Grã-Bretanha e Kate Middleton,  colega de tempos de estudante,  foi prontamente associado à uma história familiar semelhante e que teve ampla repercussão na mídia - o casamento do príncipes Charles e Diana, pais do noivo. A união dos pais de William foi pautado por ingredientes que mais se assemelhavam a um relacionamento de pop-stars: o namoro com uma ex-babá e professora, o noivado, o casamento televisionado para um bilhão de telespectadores pelo mundo, as juras de amor eterno acompanhadas com emoção pelos súditos e público em geral que torciam pela felicidade do casal. Diana era adorada por sua singeleza, tinha um apelo popular que incomodava de certa forma a família real, mas  juntamente com Charles formavam um simpático casal que tinha tudo para dar certo. 

Entretanto toda a simbologia de encanto foi se apagando com as crises do casal - Charles tinha um relacionamento paralelo  com Camila Parker, com quem se casou em 2005; este e outros escândalos foram amplamente divulgadas pela imprensa, especialmente pelos tablóides sensacionalistas. Essas crises foram minando a relação e o casamento não se sustentou; já em 1992 estavam separados e a união acabou oficialmente em 1996, um ano antes do acidente fatal com Diana em Paris.  Finalmente terminava, de forma inesperada, uma história de amor contemporâneo que poderia ter acontecido  com  qualquer casal, mas com um elemento que alimentava o imaginário do público e ao mesmo tempo desestruturava a relação - a hiper-exposição na mídia.

Vivemos numa sociedade iconoclasta (do grego eikon=imagem + klaein = quebrar), ou seja, uma sociedade que 'quebra', ataca idéias ou instituições quaisquer que sejam. Após os protestos estudantis de maio de 1968 na França, o mundo e suas instituições foram com mais frequência postas sob contestação, num mecanismo frenético que se repete numa velocidade surpreendente. O casamento, como uma dessas instituições contestadas, vem sendo reinterpretado de sua forma original secular, com a propagação de novos ideais de relacionamento sugeridos como sendo viáveis no mundo contemporâneo. Esses ideais de comportamento são difundidos por sociólogos, historiadores, profissionais da área da saúde como psicólogos e psiquiatras que, em suas análises, propõem uma releitura nas estruturas sociais mais elementares  a começar pela família. A decretação, por parte destes profissionais, do fim do amor romântico, do casamento 'sob o mesmo teto',   são vistos como algo possível e inevitável, visto que numa sociedade que preza a individualidade a níveis extremos como a atual, a felicidade somente se dá quando o indivíduo se autorrealiza plenamente, ou seja, sozinho. E para a divulgação desses ideais, os seus defensores contam com a mídia, grande aliada e incontestavelmente um dos grandes referenciais iconoclastas, que vive de reinventar de tempos em tempos novas estratégias e novos produtos sejam elas comerciais ou culturais para alimentar o público e o mercado publicitário.

Por mais que se afirme que há - e com certeza há -  uma expectativa coletiva para que William e Kate sejam bem sucedidos nessa nova fase de suas vidas, não há também como negar que, como parte de uma estrutura política-midiática, eles correm o risco de terem a imagem  e o futuro casamento abalados pela mídia. Assim como artistas que veem na imprensa uma aliada-inimiga dependendo da necessidade e foco de interesses de ambas as partes, os noivos certamente serão capas de muitas capas de jornais e revistas e terão suas imagens divulgadas em programas em matérias que irão desde atividades corriqueiras até especulações e rumores que fazem a alegria sinistra dos súditos e do público em geral. A monarquia britânica tem sido especialista em protagonizar os piores momentos na mídia. A família real sabe que depende desta estratégia de mão dupla: a mídia britânica a divulga com material farto para suas matérias e a família de Elizabeth II  necessita de publicidade para manter a imagem e resistir aos tempos modernos e não perder a legitimidade. É um sistema de contrários.  William e Kate podem, se quiserem e utilizarem de inteligência, ser um novo marco nesse sistema, não se expondo em excesso, demonstrando transparência, prudência  nas ações do dia-a-dia e não caindo no jogo da mídia  destruidora de ideais e instituições. Se fizerem isso, certamente serão ícones do ideal de amor eterno e um referencial para aqueles que ainda acreditam que a vida a dois é algo possível.


Fonte:

13 de nov. de 2010

Monteiro Lobato é a cara do Brasil

Capa de "A Chave do Tamanho" de 1942,
livro de Monteiro Lobato (1882-1948)
Monteiro Lobato está em discussão. Não por suas campanhas a favor do petróleo ou polêmicas pessoais, mas por ter outra vez sua obra ligada às questões de racismo. O Conselho Nacional de Educação sugeriu ao Ministério da Educação a não distribuição do livro 'Caçadas de Pedrinho' por entender que a obra infantil tenha teor racista em certos trechos. O parecer foi redigido pela conselheira e professora Nilma Lino Gomes. Nesse debate houve acusações de 'porta-vozes' da oposição na mídia que esbravejaram alertando que estamos perto de um regime ditatorial onde a censura irá prevalecer. Houve também o clamor do pessoal do establishment com o já conhecido discurso do 'país cordial onde as diferenças são respeitadas' que adoram afirmar que não são racistas pois tem empregadas domésticas negras em casa e que elevador de serviço é um mal necessário (Sônia Travassos, professora da UFRJ disse que a censura do CNE é 'absurda', pois para ela 'a Tia Nastácia é querida por todos do Sítio, participa da vida social da família e tem espaço para expressar sua cultura').

A originalidade de Lobato em sua série de livros infantis ambientada no 'Sítio do Pica-Pau Amarelo' está em ir contra a corrente. Primeiro por ser pioneiro neste gênero ainda tão desprezado no Brasil. Segundo por ter entre seus personagens a 'causadora' da polêmica atual - Tia Nastácia, a empregada negra que inclusive foi protagonista de Lobato em 'Histórias de Tia Nastácia', livro onde ela conta histórias de vários lugares para as crianças do Sítio. Algo impensável, no país de Jorge Amado que em seu 'Capitães de Areia' elege Pedro Bala, o garoto loiro como líder do grupo de meninos infratores das ruas de Salvador.

Lobato viveu parte de sua vida quando o pensamento racista embasado em teorias científicas estava em alta, tendo esse pensamento justificado o ideal de superioridade racial. No Brasil após a destruição de Canudos na guerra de mesmo nome, o médico baiano Nina Rodrigues, estudioso das teorias racistas-científicas fez uma análise dos cérebros do líder Antônio Conselheiro e de alguns de seus seguidores para explicar o fanatismo e uma provável degeneração de raças, fato este narrado com ironia pelo jornalista Euclides da Cunha que acompanhou o desfecho da guerra no final do século 19. Esse pensamento de superioridade de raças difundiu-se por outras áreas, inclusive nas artes. A título de exemplo, temos a história de 'Tarzan', uma narrativa que tenta, difundir o ideal racista-científico: - um nobre inglês é abandonado na selva devido a morte de seus pais e é criado por macacos; mas mesmo na adversidade de um ambiente primitivo, tem a eugenia (melhoramento genético) a seu favor, levando para a selva a liderança e supremacia de sua raça. Nos quadrinhos, seguindo esta linha de pensamento, há a lenda do Fantasmaguardião branco que tem a missão de proteger e defender a selva.

Nesta atmosfera estava Lobato com sua Tia Nastácia protaganizando histórias de modo inédito para uma personagem negra. Evidente que a composição é estereotipada, pois o próprio Lobato foi influenciado por autores racistas. Porém, mesmo com essas influências, Lobato dá mostras de tentar buscar a identidade escondida num ambien
te de não aceitação de nossa miscigenação, na eugenia racial proposta no incentivo imigratório europeu do séculos 19 e 20. Além da protagonista negra Tia Nastácia, temos um marco desta busca do autor - o conto Negrinha, que dá nome a um livro homônimo. Nele Lobato narra de forma comovente, toda a tragetória de uma garotinha negra explorada por uma senhora religiosamente hipócrita, mas que não tinha compaixão. Negrinha trabalhava exaustivamente na casa da 'sinhá' sem direito a ser criança. Quando as netas da patroa aparecem com uma boneca, o brinquedo nunca visto pela protagonista a faz sonhar com um mundo fantasioso a qual nunca teve direito. A tragédia final e prevista devido aos maus tratos sofridos por Negrinha representa um alerta do autor da exploração e das injustiças sofridas pelos negros no país, um tema tão contemporâneo.

Monteiro Lobato é um reflexo do contraditório que nos guia desde a fundação do Brasil até hoje: o país tido como especial de uma população gentil e cordial mas que protagoniza uma sociedade
com os maiores índices de desrespeito aos direitos humanos. Uma civilização onde judeus e árabes podem conversar tranquilamente pela rua, mas que ainda pratica linchamentos; uma nação entre as mais ricas do mundo, mas que tem índices de desenvolvimento humano semelhantes a países mais que subdesenvolvidos. No pais das contradições é impossível tentar entender Lobato sem uma auto-crítica, coisa tão rara por aqui. Nem a retirada de circulação do livro "Caçadas de Pedrinho' na rede pública (ou qualquer outro que seja), tampouco sua exaltação sem ressalvas alegando nossa demagógica 'democracia racial' são necessárias. O caminho a seguir é o mesmo aberto pelo escritor de Taubaté - de tentar compreender a nós mesmos, difundindo idéias para que alcancemos as respostas, revendo conceitos, questionando interesses menores, mesmo para isso tenhamos que correr riscos pelo atrevimento de irmos contra um sistema perverso e opressor.

6 de nov. de 2010

Uma mulher para arrumar a casa

A eleição da primeira mulher presidente da República é algo notável, principalmente quando estamos adiante de países desenvolvidos como Estados Unidos, França e outros da Europa que ainda não tiveram chefes de Estado mulheres. E é  mais notável ainda quando mesmo antes da sua posse, o nome de Dilma Rousseff já criou frisson entre as feministas, sexistas e a turma do 'exótico por natureza' que com seus discursos exaltados, suas brados históricos, suas frases lapidares nos deixam constrangidos e desmontam o ideal de progressismo que a eleição de uma mulher presidente pode trazer.

As feministas em particular, que pareciam sossegadas com seus textos contra o patriarcado, contra o serviço doméstico, contra os salários maiores dos homens em relação aos das mulheres, a favor do domínio irrestrito do corpo,  ressurgiram do sono profundo. Dilma, numa situação inesperada,  foi vítima da patrulha ideológica de suas próprias companheiras de partido. Numa plenária nacional de mulheres do PT uma de suas 'companheiras', Sueli de Oliveira, saiu-se com a observação: "Quando Dilma diz: “Nós, mulheres, nascemos com o sentimento de cuidar, amparar e proteger. Somos imbatíveis na defesa de nossos filhos e de nossa família”, valorizando estas funções como grande qualidade das mulheres, ela colabora com os valores do patriarcado e dos fundamentalistas na defesa de que lugar de mulher é na casa, no lar e na família".

Este é um exemplo da originalidade do pensamento feminista contemporâneo. E parece que vem mais por aí. Mas deve-se ressaltar que por mais que feministas e congêneres esperneiem, difundindo uma simbologia sexista nesta disputa eleitoral na qual Dilma saiu vitoriosa, houve nessa disputa algo inverso ao ideal daquelas que exigem de modo precário, o igualitarismo de gêneros. Basta observar a trajetória política recente de Dilma Rousseff - chamada para assumir a Chefia da Casa Civil num período de crise, criou uma relação de confiança com o presidente Lula e assim se estabeleceu a estrutura para uma possível sucessão ao fim do mandato do presidente-operário. Houve dentro desse processo muita crítica míope, mais por causa de incompetência da oposição do que por limitações da ministra preferida de Lula. Claro que limitações, Dilma tem, mas tem se empenhado e os resultados são visíveis: um melhor diálogo e uma melhor desenvoltura - apesar de ainda pecar nos jargões econômicos - e o sucesso na reorganização da imagem de 'durona' que foi abrandada.

Porém o mais importante é a simbologia de harmonização entre os dois sexos vista na relação entre Lula e Dilma; é impossível não notar nos discursos a cumplicidade entre os dois, algo até mesmo raro entre relações matrimoniais. A troca de olhares que mostravam confiança, a sintonia entre eles, o respeito mútuo. Lula confiou em Dilma e ela confiou nele, sem melindres ou egocentrismos. E para isso, não foi preciso o hasteamento de bandeiras narcisistas ou o discurso preconceituoso-sem-querer-ser do tipo 'ela trará um toque de sensibilidade ao governo...' (isso faz lembrar da ex-prefeita e ícone feminista Marta Suplicy e seu Projeto Belezura que plantava coqueiros em bairros chiques, enquanto os bairros não nobres afundavam nas enchentes). Todo este processo talvez provoque incômodo na turma dos ideais fumegantes, das burocratas do pensamento feminista - professoras de sociologia e de humanas, diretoras de ONGs que mamam gostosas verbas públicas para vislumbrar o vazio e descrevê-lo como quem diz algo substancialmente importante.

Enfim, parece que Dilma não fez e não deverá fazer coro com 'as companheiras'. Dilma talvez não aguentasse dez minutos de conversa com Betty Friedan (a papisa do feminismo), acharia a messiânica dona de casa que livrou as mulheres do jugo machista uma desvairada a procura de platéia. A futura presidente pediria licença da conversa, indo fazer o que mais sabe fazer - tratar de assuntos de que domina, dando o melhor de si, sem preocupar-se com bordões e panfletagens que não indicam um caminho, uma saída. Iria mostrar serviço, honrar o voto de confiança de mulheres, homens, jovens, gente que sente no dia-a-dia a necessidade de se construir um país melhor, distribuir a renda, observar os gastos. Resumindo, pôr a casa em ordem. Esperamos que a futura presidente utilize seus conhecimentos da área econômica e saiba cuidar do orçamento 'da casa de quase  190 milhões de habitantes', para desespero das feministas, mais preocupadas com o discurso 'socialista-Channel' e a retórica de degradação das relações de gênero.


Fonte:

31 de out. de 2010

Um épico do século 21

Desconsiderando o fato de ter sido explorado em alguns momentos de modo sensacionalista pela mídia e  demagógico por políticos locais, o episódio envolvendo os 33 mineiros  que ficaram 70 dias soterrados na mina de Copíapó no Chile trouxe uma simbologia que há tempos não se percebe no mundo contemporâneo - a simbologia épica.

A narrativa épica (do grego epos = palavra, história) foi utilizada em textos que exaltavam as grandezas e coragem de um povo, como por exemplo na Ilíada e na Odisséia de Homero, que se referem aos gregos. Já no século 16 da nossa era Luis Vaz de Camões compôs Os Lusíadas onde mostra a bravura do povo português cruzando mares e descobrindo novas terras. Porém com a modernidade o épico perdeu a razão de existir por estar associado a um grupo, um povo como todo sem distinção. Atualmente, após termos uma nova visão política e social que é respaldada nas liberdades individuais, o épico perdeu força ficando apenas na recordação dos tempos antigos. 

Num tempo onde as individualidades são exaltadas para que se assegurem os direitos de todos indistintamente, há distorções sobre essa visão humanista tão importante. Uma distorção é na propagação do individualismo como algo bom para um grupo, uma sociedade, um país. Culturalmente o individualismo pode ser notado em certos filmes, romances, na dramaturgia televisiva, na música. Até mesmo na política há determinados grupos que apregoam o individualismo de modo indireto, como por exemplo no pensamento neoliberal, onde o estado deve existir em função do indivíduo e não da sociedade.

Daí esse caos contemporâneo que notamos em todos os segmentos da sociedade. A individualidade transformada em individualismo faz com que percamos cada vez mais a noção de que em toda sociedade a força motriz que a impulsiona é o bem comum. Não há individualidade que resista quando as leis são desrespeitadas em benefício de um ou outro; ou quando um ecossistema é poluído, quando os direitos do cidadão são negligenciados, quando a corrupção é tida como normal num país onde os indivíduos não tem acesso a muitos serviços negados pelo governo cada vez mais adepto do 'estado individualista (ou neoliberal).

A simbologia dos mineiros chilenos (que poderiam ser brasileiros ou americanos) sendo resgatados da mina, num parto de um novo começo é válida quando percebemos que não somos importantes individualmente quando não pensamos no outro, no grupo, na sociedade. Ali provavelmente não haveria lugar para individualismos, o mais importante era que cada um cooperasse para que o bem comum fosse atingido. Cada qual com sua história de vida, suas metas, sua visão de mundo, mas com suas prioridades voltadas para o bem comum. Os colegas na superfície esforçando-se dia e noite para que a operação de resgate saísse perfeita. As famílias torcendo pelos seus entes e pelos colegas. A população acompanhando o episódio épico contemporâneo com heróis de verdade e coragem real, muitas vezes mal remunerados e sem reconhecimento pelo trabalho que beneficia a sociedade. Na individualidade dos mineiros houve o senso de coletividade para que todos atingissem o objetivo de retornar à superfície e à vida. Foi uma histórica épica que nos faz refletir sobre o ditado que explica nosso individualismo: 'se cada um fizer a sua parte, o mundo será melhor'. O certo dever ser: 'se cada um fizer a sua parte pensando em todos, o mundo será melhor'. E para isso, não é preciso ser um herói dos textos ou dos filmes épicos; basta pensar e agir de modo solidário.


30 de ago. de 2010

A hora e a vez dos políticos nerd


Segundo o dicionário Merriam-Webster o significado da palavra nerd é: "Uma pessoa desajeitada, sem atrativos ou socialmente deslocada; uma pessoa cegamente devotada a objetivos intelectuais ou acadêmicos". Resumindo, é um estereótipo de pessoas dedicadas de modo obssessivo a determinado assunto, geralmente associado à questões tecnológicas. É um termo fortemente associado à sociedade norte-americana, favorecido pelo ambiente favorável à criatividade e à inventividade. Um personagem simbólico do estereótipo nerd é Thomas Blanchard, jovem americano que viveu no século 19  e que ficou rico inventando equipamentos para produção em série, desde peças para armas até ferramentas, além de ter patenteado vários inventos. Também representam este estereótipo Bill Gates, que através de seus programas operacionais, popularizou o uso do computador, tornando - o de fácil operação; e Steve Jobs, fundador da Apple, uma das gigantes na fabricação de computadores pessoais.

Mais associado à questões técnicas e práticas, o nerd não circularia em um primeiro momento da vida política. Num país de herança latina como o nosso, onde os grandes oradores tem boas possibilidades de ascenção e liderança política, sobra pouco espaço para técnicos e pessoas especializadas em várias áreas. Apenas em setores especializados da administração pública, como secretarias com perfil técnico e tecnológico e áreas estratégicas parecem poder abrigar pessoas com este perfil profissional. Há um consenso geral de que a política se faz apenas por políticos de palanque com retórica hipnotizante, sedutora; para nós não existe política de bastidores, a administração seria levada apenas pelo eleito e suas intuições.Esquecemos que política não se faz apenas com retórica, mas com competência e qualidade também. 

Nessas eleições, especialmente para presidente, há uma situação especial. Os três principais candidatos são políticos que possuem um perfil técnico, que poderiam se classificados como políticos nerd. Dilma Roussef, economista que nunca exerceu cargo eletivo, é conhecida  nos  bastidores como eficiente secretária de estado. Tem a complexa missão de seguir o legado de seu padrinho político, o presidente Lula - o que não será fácil, visto que Dilma é conhecida por ser técnica demais e ter inabilidade em algumas situações onde o improviso do discurso é necessário para a exposição de idéias. Apesar disso, ela demonstra que tem se aperfeiçoado  na tentativa de amenizar a imagem de política desajeitada - a imagem de Dilma foi inclusive repaginada, ela abandonou os óculos e aposta em penteados novos, além de ter melhorado na argumentação quando confrontada pelos adversários políticos.

Outro candidato desta leva é José Serra, também economista e um  político com mais tempo de estrada. Ele é conhecido pela facilidade no trato com números. Serra circula entre o perfil técnico e político, mas recentemente devido a falhas estratégicas em sua candidatura, o seu lado técnico (ou nerd) tem sido mais destacado. Os adversários o acusam de ser inábil no contato com a população, de ser personalista demais, arrogante e de não gostar de trabalhar em equipe. Serra, se fosse avaliado pelo lado da experiência política, talvez seria vitorioso no embate com Dilma. Mas como se destacar numa disputa onde a adversária é apadrinhada por um presidente que é ícone do brasileiro comum, por se enxergar nele? - um ex-sindicalista que vencendo preconceitos históricos se tornou líder de uma país com uma oratória cativante e simpatia popular e que na sua administração tem mostrado números expressivos de desenvolvimento, sendo este desenvolvimento reconhecido até no exterior? E ainda mais tendo essa candidata participado desse processo de desenvolvimento?

Também na corrida presidencial há uma candidata nerd com perfil diferenciado: Marina Silva, historiadora, que de origem simples e vida sofrida (aprendeu a ler aos doze anos), tornou-se lider de sua comunidade e pelo estudo conseguiu reconhecimento pessoal e político. Ela poderia ser classificada como uma eco-nerd, pois tem se empenhado no discurso ambientalista e defesa dos trabalhadores que vivem dos recursos naturais principalmente na amazônia. Finalizando, temos outro candidato nerd nas eleições deste ano, só que concorrendo para o governo de São Paulo: o ex-governador e candidato Geraldo Alckmin. Alckmin pode ser encaixado na lista de político-nerd: é adepto da administração técnica, não é um excelente orador, apesar de ser político de carreira. Quando foi vice-governador ao lado de Mário Covas, se diferenciava deste, um político tradicional de posições e discursos inflamados. Um jornalista paulista o apelidou de 'picolé de chuchu' devido a sua forma diferenciada de praticar política, sem grandes discursos e sem utilizar o personalismo que é algo tão característico da política nacional.

Seriam os políticos-nerd um novo horizonte na administração brasileira? Talvez sim, mas eles certamente se adequarão a esses novos tempos, transitando entre o lado técnico de administração pública e entre o lado político propriamente dito. São possivelmente o reflexo de uma nova era, onde lutamos para buscar o equilíbrio entre a administração da técnica - tecnologia e o lado humano. E o lado humano jamais pode  ser ofuscado, seja pela valorização exagerada do tecnicismo (que no setor público vira tecnoburocracia) ou pelo culto cego à  retórica inflamada, às vezes demagógica e com resultados sociais desatrosos. Tendendo para qualquer um dos lados, quem perde somos nós eleitores e cidadãos, que pouco nos importamos se o candidato eleito tem o perfil tradicional ou nerd  (técnico), mas apenas que sejam competentes e honrem nosso voto de confiança.

Fontes
http://www1.folha.uol.com.br/folha/brasil/ult96u427946.shtml