5 de jun. de 2011

A marcha das cabeças vadias

Aconteceu no dia 04/06/2011 na Av. Paulista, São Paulo, a primeira 'Marcha das Vadias'. O evento que pretendia reunir 2500 pessoas, reuniu apenas cerca de 300 no sábado frio da capital. A idéia original da marcha ocorreu após um seminário numa universidade de Toronto, Canadá, onde um policial disse que estupros seriam evitados se as alunas não se vestissem como vadias - sluts em inglês. Então as alunas, revoltadas com a afirmação do policial, organizaram um protesto e saíram vestindo roupas sumárias e gritando palavras de ordem contra a opressão masculina. Foram as pioneiras na marcha que já ocorreu em 15 lugares diferentes até agora, desde Janeiro de 2011, data da primeira marcha.

Nas ruas de São Paulo, as manifestantes - algumas - desfilaram de roupas íntimas,  segurando cartazes e ecoando slogans da causa feminista. As fotos das participantes do evento são interessantes. Uma delas, com óculos de aros pretos e cabelos aparados, se destacava pelo modelo com um recurso estranho de sustentação que tentava segurar os 'quilinhos' a mais. Porém mais estranho era o fato de ela estar segurando um cartaz em inglês (talvez um pouco confusa e acreditando estar no fuso horário de Londres), onde se lia: "I'm a human, not a sandwich!" ("Sou um ser humano, não um sanduíche!"). Fazendo parte do recheio do protesto, uma outra segurava um cartaz - por coincidência rosa - onde, talvez num possível exercício de afirmação existencial, estava escrito: "Não sou puta". 

Uma das organizadoras do desolado evento, Solange Del Ré, 30, expressa sua linha de pensamento sobre o assunto:"É um problema corriqueiro que toda mulher enfrenta. Se você vai comprar um cigarro no bar, pode ser intimidada, como se estivesse provocando essa reação só por ser mulher", afirma. Ela prossegue: "A gente sabe que tem mulheres sendo espancadas no Brasil. Mulheres que são estupradas por causa da roupa que estão usando".  Ou seja, ela não dissocia uma investida elegante ou uma cantada elogiosa do homem da grosseria ou da rudeza encontrada em algumas atitudes masculinas ao abordar uma mulher. Também  na visão de Solange, a probabilidade de estupro ocorrer num país islâmico como o Irã seria nula, pois lá existe um código rigoroso de conduta para a vestimenta feminina, que é representada por véus e vestidos longos.

O movimento feminista é reconhecido pelas incoerências de discursos, de atitudes, pela imprecisão de sua análise da realidade econômico-social e do eterno discurso da independência feminina utilizando-se não da originalidade, mas de uma reprodução inconsequente de comportamentos equivocados de certos homens. A professora Silvia Koller do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul endossa essa perspectiva afirmando:"Uma massa dessas na rua expõe esses pontos para a sociedade: se os homens podem andar de qualquer jeito, por que as mulheres não podem? Nem por isso os homens são agredidos, xingados, estuprados". Há aqui uma tentativa de impor a igualdade através da construção social, como se homens e mulheres pudessem ser ''moldados'' excetuando as características físico-biológicas em suas vidas. Certamente Silvia Koller não exigiria equidade em campos da vida cidadã feminina, como por exemplo na obrigatoriedade do serviço militar para mulheres (que existem em alguns países como Israel), assim como defesa de casamentos de mulheres com potencial econômico/social um pouco acima da média do homem. O discurso feminista certamente quer mostrar idoneidade, porém ela é escassa em vários setores da vida humana, mesmo em épocas recentes onde uma presumível igualdade de direitos não tem sido representada pelo empreendimento feminino em áreas afins com resultados visíveis.

A incoerência ronda grandes nomes da ideologia feminista. Simone de Beauvoir, um das principais deidades do feminismo, saía de bicicleta pela França ocupada durante a Segunda Guerra atrás de namorados, livrando-se de obrigações para com seu país na resistência francesa ao nazismo. Foi partidária, junto com o marido Jean-Paul Sartre, da 'promiscuidade consciente', onde de comum acordo tinham práticas pouco ortodoxas em um relacionamento conjugal. Seguindo esse acordo, Beauvoir tinha livre trânsito em laços fora do matrimônio, sendo talvez uma das precursoras a assumir esse ideal de vida amorosa. Assim, Beauvoir assinava a carta de alforria, graças ao seu prestígio como líder feminista, a todas as mulheres que veem nela um ideal de mulher independente e à frente e seu tempo. Entretanto essa parece ser uma alforria falsa, pois essas mesmas mulheres alforriadas querem, seguindo os ensinamentos de Simone de Beauvoir, se dissociar do referencial de vulgaridade que ronda o ideário coletivo em relação a certas mulheres no mundo atual: a 'mulher objeto' que atingiu esse patamar graças à liberação sexual, mas que é relatada como produto do machismo que se aproveita dessa 'mulher objeto' de todas as formas. A mulher independente que mostra sua sensualidade na mídia, graças ao engajamento libertário feminista ("Meu corpo, minhas regras" dizia um dos cartazes da marcha) e que alimenta os anseios do homem machista. Num sistema onde o pensamento parece um acessório apenas para a divulgação de ideais incoerentes, não existe a possibilidade de se destacar o criador da criatura - todos estão no mesmo patamar. O feminismo e o machismo parecem fazer parte de um sistema mercadológico de 'oferta e procura'.

Uma desafeta de  Simone de Beauvoir,  Antoinette Fouque, afirmou que a frase "Ninguém nasce mulher, mas se torna mulher" foi o pronunciamento mais imbecil do século. Fouque também é crítica do modelo de 'mulher sem filhos' e aponta uma certa frigidez mental da mulher de Sartre. Talvez até nisso as feministas de lingerie da Paulista tenham algo similar a Beauvoir. A frouxidão de idéias e de metas é algo visível na marcha. E frouxidão mental não é recomendável, pois daí para a 'mente vadia' é um passo. Não, as moças da Paulista não são vadias em seus trajes, mais podem ser em suas idéias. Que seja lembrado o ditado "mente vazia é oficina do demônio". Oficina das idéias esdrúxulas guiando cabeças vadias.

Uma história íntima da humanidade, Teodore Zeldin, Best Bolso,RJ, 2008

A cantiga de roda mais bonita da cidade

O hit mais comentado e acessado da internet essa semana foi o clipe da música 'Oração' da banda curitibana "A banda mais bonita da cidade". O grande número de acessos fez com que a banda underground se tornasse conhecida nacionalmente, inclusive com entrevistas para TV e sites de notícias. Formada há dois anos, o quinteto disponibilizou 'Oração' no site You Tube e em quinze dias já foram registrados mais de 4milhões e 500 mil visualizações.

O guitarrista da banda Rodrigo Lemos resumiu, em entrevista, o evento:"Postamos o clipe apenas nos perfis do Facebook das pessoas que participaram da gravação. Foi muito rápido: saímos para almoçar e quando voltamos observamos que os amigos dos amigos estavam compartilhando a música. Tudo aconteceu de uma maneira inesperada”, reconhece o curitibano".

O clipe foi gravado em 'plano sequência' utilização de uma só tomada, ou seja, o vídeo não tem cortes. Foi gravado em uma casa no interior do Paraná, onde participam no vídeo-clipe, além da banda, alguns amigos dos integrantes. Foram feitas oito gravações segundo  o cinegrafista do clipe André Chesini, sendo que a motrada no Youtube é a terceira tentativa."A gente tinha o zelo de fazer o filme, bonitinho e tal. Mas estávamos totalmente descompromissados", diz Rodrigo, num das várias tentativas de passar uma idéia de 'eventualidade' para a divulgação do clipe.

Apesar de tudo indicar o contrário, isso aparenta ser uma grande estratégia de marketing. Qualquer pessoa com mínimos conhecimentos da linguagem cinematográfica sabe que houve um cuidado com fotografia, áudio e gravação, além da escolha criteriosa para uma música que foge um pouco da linguagem proposta pelo grupo. 'A banda mais bonita da cidade' segue à risca a cartilha indie  (abreviatura de independente em inglês, movimento musical surgido nos anos 1980), que tem uma metodologia de distribuição 'não comercial', com selos terceirizados ou próprios para lançarem seus trabalhos. Mas a independência não para por aí. Há toda uma ideologia, uma certa liturgia no trabalho dos indies que, ao tentarem a originalidade, tiram essa intenção do processo, virando algo como 'o mais do mesmo'. No indie, a pretensão é ir contra a corrente, adotando um visual despojado. As letras tentam suprimir o despojamento visual com uma pretensiosa (e por vezes irritante) tentativa de criar uma atmosfera beletrista, onde metáforas, hipérboles (exageros) e ecos sonoros são prioridade e nem sempre garantia de boa música. A escola indie começou nos anos 1980 e tem nas bandas 'The Strokes', 'Belle & Sebastian', 'Beirut' além da brasileira 'Los Hermanos' seus maiores expoentes.

Música para grudar no ouvido - Algo que faz com que suspeitemos do ar descompromissado dos discursos dos integrantes, alegando a não-fama  como motivador do clipe, pode ser notado na letra da música. Ali, há o registro de uma estrutura semelhante às cantigas de roda, com versos de sete sílabas (também conhecido como redondilha maior). Temos em algumas cantigas de roda essa estrutura, como em 'Ciranda Cirandinha'. As sílabas acentuadas estão em caixa alta:

"Ci|ran|da|ci|ran|di|nha
Va|mos|to|dos|ci|ran|DAR
Va|mos|dar|a|mei(a)|VOL|ta
Vol|ta(e)|mei|a|va|mos|DAR.’"

Chico Buarque de Holanda em sua 'A banda' também usa redondilha menor:

"Es|ta|va(à)|to|a|na|VI|da
O|meu |a|mor|me|cha|MOU
Pra|ver|a|ban|da|pas|SAR
Can|tan|do|coi|sas|de(a)|MOR"

Valendo-se desse recurso facilitador de assimilação da letra, 'A banda mais bonita da cidade' vem com igual proposta:

"Meu|a|mor
Es|ta(é)| a(úl)|ti|ma(o)|ra|ÇÃO
Pra|sal|var|seu|co|ra|ÇÃO
Co|ra|ção|não|é|tão|SIM|ples
Quan|to pen|sa
Ne|le|ca|be(o)|que|não|CA|be
Na|des|pen|sa
Ca|be(o)|meu|a|mor
Ca|bem|três|vi|das|in|TEI|ras
Ca|be|u|ma|pen|te(a)|DEI|ra
Ca|be|nós|dois..."

Efeito "Anna Júlia" - Com essa singela música e durante longos seis minutos 'A banda' tenta fazer com que as letras obtusas e pretensiosas de outras músicas como 'Canção pra não voltar' sejam esquecidas por um momento. E mostra em rimas repetidas à exaustão que pode chegar ao grande público, mesmo que negue ou que venha renegar isso futuramente. Um episódio interessante foi o caso dos 'Los Hermanos' que despontou com a conhecida "Anna Júlia", que foi renegada como algo 'inferior' quando os barbudos cariocas já tinham alcançado seus objetivos mais imediatos. Somente um exercício de 'previsão de riscos' em carreiras musicais poderia dar um idéia sobre no que isso irá resultar. Mas ao seguir uma cartilha já consagrada, apesar de arrogarem a si a originalidade mais criativa, 'A banda mais bonita da cidade' pode até conseguir certa notoriedade pois está fazendo a lição de casa corretamente.