5 de abr. de 2022

Militância politicamente correta e o verdadeiro despertar

 por Slavoj Zizek

A suposta 'militância' liberal e sua cultura de cancelamento tem pouco a ver com despertar para o que está acontecendo no mundo e tentar mudá-lo - é somente muito barulho por nada, enquanto o status quo é cuidadosamente preservado. 

A reprovação liberal-conservadora para a assim chamada cultura do cancelamento é que é muito radical: dizem que seus agentes querem destruir todas as estátuas, limpar nossos museus, reescrever nosso passado inteiro...em resumo, querem nos afastar de nossa memória coletiva e purificar nossa linguagem cotidiana num linguajar vazio, censurado e sem vida. Entretanto, acho que Ben Burgis está certo em seu apelo de que os militantes da cultura do cancelamento são ''Comediantes que cancelam enquanto o mundo pega fogo'': longe de ser 'radical', suas imposições de novas proibições  e regras são um dos casos específicos de pseudo-atividade, de como se assegurar que nada realmente mudará pela simulação em ato tresloucado. Não por acaso novas formas de capital, em particular os capitalistas hi-tech anti-Trump (Google, Apple, Facebook), fervorosamente apoiem as lutas antirracistas e pró-feminismo - o 'capitalismo militante' é nossa realidade. Ninguém muda as coisas de verdade prescervendo medidas cuja metas são estabelecer um equilíbrio superficial sem atacar as causas implícitas deste desiquilíbrio.

(...)Existem algumas raras vozes de autêntica oposição na esquerda a estes caminhos em direção à falsa justiça - além de Burgis, podemos citar Angela Nagle e Katherine Angel. O único problema que tenho com o livro de Katherine chamado 'Tomorrow Sex Will Be Good Again' ('O Sexo Amanhã Será Novamente Bom') é o seu título, o qual parece implicar que o sexo uma vez sendo bom (não antagonístico) será também nas outras vezes. Eu raramente leio um livro em que concordo com suas premissas  básicas tão fortemente - uma vez que essa premissa é formulada de modo conciso no comentário de capa do livro que cito desavergonhadamente:

''A mulher está numa enrascada: no modo do consentimento e empoderamento, elas devem mostrar seus desejos claramente e de modo confiante, ainda que os pesquisadores da sexualidade sugiram que o desejo feminino é sempre revelado lentamente e que os homens sejam astutos para afirmar que eles sabem o que a mulher - e seus corpos - querem. Enquando isso, a violência sexual é grande. Como podem as mulheres, nesse contexto, saber com certeza o que elas querem e porque esperamos isso delas? Katherine Angel desafia nossas certezas em relação ao desejo das mulheres; por que, questiona, deveriamos esperar delas o conhecimento de seus desejos e como podemos levar a violência sexual a sério quando não saber o que elas querem é a chave seja do erotismo e da sua personalidade?''

O trecho acima é crucial: alguma teoria feminista deveria levar em consideração o não-conhecimento como um ponto-chave da sexualidade e colocar sua oposição à violência em um reacionamento sexual não nos termos usuais do 'sim é sim', mas por evocar esse mesmo não-conhecimento. Isto porque o jargão que afirma que as mulheres 'devem dizer seus desejos claramente e com confiança' não é somente uma imposição violenta na sexualidade mas literalmente uma dessexualização, uma promoção do 'sexo sem sexo'.  Daí o motivo do feminismo, em alguns casos, impor  precisamente o mesmo 'shaming and silencing' (constrangimento e silenciamento) da sexualidade das mulheres que busca combater. O que está por detrás da violência física (ou psicológica) direta das investidas sexuais masculinas não desejadas é a presunção condescendente de que ele sabe o que a mulher 'confusa'' não sabe (e é dessa forma legitimizado a agir baseado nesse conhecimento). Poderia ser uma justificativa que um homem é violento mesmo se ele trata uma mulher de forma respeitosa - uma vez que é feito sobre essa presunção de saber mais sobre os desejos dela do que ela própria soubesse.

Isto não implica que o desejo das mulhres seja em algum sentido deficiente, comparado àquele dos homens (que supostamente sabem o que querem) ; a lição da psicanálise é que há sempre um vão  que separa o que queremos do que desejamos. Talvez aconteça que eu não somente deseje algo mas que o queira sem pedir de modo explícito, escondendo o que me impulsiona - procurar diretamente arruinaria a satisfação de conquistá-lo. E inversamente, eu poderia querer algo, sonhar com isto, mas não desejá-lo a fim de conseguí-lo - a minha completa consistencia da subjetividade repousa nesse não-ter: conseguí-lo de modo direto levaria ao colapso de minha subjetividade. Deveríamos ter sempre em mente que uma das mais brutais formas de violência ocorre quando alguma coisa que secretamente desejamos ou fantasiamos (mas que não estamos preparados para fazer na vida real) é a imposto a nós por fatores externos.

A única forma de sexo que se encaixa perfeitamente no critério do politicamente correto é o contrato sado-masoquista.

Os partidários de esquerda do politicamente correto sempre respondem aos críticos que os enfoques nos 'excessos'' da militância, no aspecto proibitivo do cancelamento e da cultura militante, ignoram uma ameaça muito mais grave de censura. Mais precisamente no Reino Unido, nós temos a polícia infiltrada nos sindicatos, regulação do que é publicado na mídia e aparece na TV, crianças menores de famílias muçulmanas interrogadas por ligações terroristas e até acontecimentos únicos como o não solucionado encarceramento ilegal de Julian Assange...Uma vez que eu concorde que a censura é muito pior do que os ''pecados' da cultura do cancelamento, penso que isso possibilita o argumento final contra a cultura militante e regulações politicamente corretas: por que a esquerda politicamente correta enfoca nos detalhes regulatórios do como nós falamos, etc em vez de trazer à tona as coisas muito mais importantes citadas acima? Não é de se estranhar que Assange também tenha sido atacado por algumas feministas politicamente corretas (não só) da Suécia que não o apoiaram porque levaram a sério as acusações sobre sua má conduta sexual (a qual foi desmentida depois por autoridades suecas). Uma infração sem provas das regras do politicamente correto relevou o fato de ser uma vítima de terrorismo de estado...

Entretanto, quando a postura militante toca num aspecto realmente importante da reprodução da ideologia hegemônica, a reação do establishment muda do desdém pelo oponente em seus excessos para uma tentativa apavorada de repressão violenta por meios legais. Sempre lemos na mídia reclamações sobre o excesso de crítica de gênero e estudos raciais que tentam reavaliar a narrativa hegemônica do passado americano. Mas estamos agora no meio de uma contra-ofensiva reacionária em ação para reestabelecer um mito de embranquecimento americano. Novas leis foram propostas em no mínimo 15 estados dos Estados Unidos que visam banir o ensino da 'teorica racial crítica', o chamado 'Projeto 1619 The New York Times' (projeto editorial do jornal novaiorquino com ênfase em artigos abordando a escravidão e suas implicações na sociedade norte-americana) e, eufemisticamente, os 'conceitos divisionistas'.

As teorias proibidas são realmente divisionistas? Sim, mas somente no sentido restrito em que se opõem (dividem-se entre si) do mito hegemônico oficial que é já divisionista em si mesmo, pois exclui alguns grupos ou posturas, colocando-os em posição subordinada. Além disso, está claro que para os partidários do mito oficial, a verdade não importa aqui, mas somente a 'estabilidade' dos mitos fundadores - estes partidários, não aqueles chancelados por eles como 'relativistas históricos', estão efetivamente praticando a perspectiva da 'pós-verdade' já que gostam de evocar 'fatos alternativos', além de excluirem mitos fundadores alternativos. Ao criticar a cultura politicamente correta do cancelamento, devemos dessa maneira sempre ter em mente que compartilhamos seus objetivos (pelo feminismo, contra o racismo, etc.) e que criticamos sua ineficiência na busca por tais metas. Com os defensores dos mitos fundadores, a história é diferente: seus objetivos são inaceitáveis e nós esperamos pelo seu fracasso na busca para atingí-los.  

(Tradução: Marcos V. Gomes)


Slavoj Zizek é um filósofo cultural esloveno 
Fonte: The Sri Lanka Guardian 

11 de out. de 2018

Bolsonaro em busca da barbárie


A pergunta inicial carrega a princípio, uma dose de imprecisão, visto que está genericamente formulada; o certo seria dizer Quem não tem medo de Jair Bolsonaro? e desta forma o tema pode ser melhor desenvolvido. Assim passamos de um contingente de pessoas que temem/admiram seu discurso ou sua conduta carregada de simbologia militar (e isso conta muito num país que já sofreu golpes militares) para um outro menos restrito, que talvez apenas admirem o ex-capitão do exército por ele representar a simbologia do cotidiano de boa parte da população onde o palco é a violenta sociedade brasileira.

Falar de Bolsonaro por meio de uma análise de perfil é tarefa não muito difícil, visto que o personagem não tem a psique bem eleborada, prima pela falta de carisma humanista, de tino verbal, de ideias práticas ou ao mínimo originais e bem conduzidas, de polidez representativa encontrada na média de lesgisladores e tribunos, enfim, todas as qualidade encontrada em alguém minimamente preparado para ser componente do poder legislativo. 

Assim como também não parece ser difícil falar de seus eleitores-padrão conhecidos como bolsominions, fusão de ''Bolso(naro)''+''minion''(lacaio, servo em inglês) e que fazem jus às personagens do desenho animado, pois assim como os minions, são subservientes àqueles que lhes extraem os sentimentos mais mesquinhos e execráveis, devotando-lhes uma paixão doentia, sendo, obedientes e sempre buscando servir de modo irracional.

Bolsonaro como pode ser visto nas primeiras impressões, representa a direita mais extrema, braço do espectro político guiado pelo populismo, negação da intelectualidade, dos direitos humanos patrocinados pelo Estado - Estado este que deve servir, sob perspectiva reacionária, prioritariamente às oligarquias e plutocracias que confortavelmente manipulam proletários de direita com discursos e práticas que ofuscam suas intenções verdadeiras para com os chamados ''pobres de direita'' que nada vislumbram a não ser repetir os mantras dos ricos. Delimitado o território bolsonarista, o público que o segue e suas características, voltamos à questão inicial: Quem não tem medo de Jair Bolsonaro?

A figura de Bolsonaro não é atemorizante, mas o que se teme é a conjuntura que sua idologia obscura busca em inúmeros anos de política; se olhassemos para seu jeito jeca, seus tiques, sua incultura, sua tosquice aliada à imensurável prepotência idiotizada de adolescente em busca de auto-afirmação não poderíamos dizer que ali há alguém que pudesse estar entre indivíduos altamente perigosos à manutenção do status quo (digo status quo no sentido político, da normalidade institucional). Mas por outro lado, há o aspecto simbólico que sua verve reacionária alimenta e esse componente - que é o adubo do fascismo que ronda a sociedade brasileira há tempos, e não de agora - deve ser revisto para perceber-se e compreender o fenômeno dos votos recebidos pelo mito no primeiro turno das eleições presidenciais de 2018.

Quem não tem medo do Bolsonaro? é a pergunta primordial e pode ser buscada nos símbolos mais primordiais que rondam o imaginário dos servos bolsonaristas. Os que não o temem e abraçam a simbologia que é denunciada exaustivamente pela esquerda como ''discurso de ódio'' são aqueles mesmos que convivem com o ódio simbólico que o Estado tem para com eles e é ingenuidade e mostra de desconhecimento das bases do ''Brasil profundo'' afirmar ser incompreensível que os não temerosos de Bolsonaro e toda sua política de truculência abracem o discurso que podem os levar à ruína sem perceberem o risco que correm.

O eleitor de Bolsonaro que não o teme é aquele possui um repertório existencial vivido por meio da violência institucional, sua família e comunidade onde vive: começa na mais tenra infância com a criança que vivienciou mais corpos de vítimas da violência em seu bairro do que datas de aniversários vividas, que tem em serviços precários como falta de creche e escola somadas ao atendimento sofrível da saúde pública como elementos integrantes deste caos; há ainda a violência estatal por parte da polícia Militar que fazem com que os discursos do capitão candidato à presidência denunciados como fascistas pela esquerda - num grito de alerta aos bolsonaristas - soem como surreais por aquele apoiadores que não veem nada de mais a cantilena verbal de violência que é realmente vivida in loco por seus eleitores e simpatizantes.

A mídia colabora para esse paradigma de violência cotidiana vivida pelo eleitor bolsonarista, principalmente o braço histórico da jornalismo conhecido como imprensa marrom com seus jornais com cadáveres à perder de vista ao lado de matérias nonsense, discursos moralistas televisivos contra a violência e aumento da criminalidade e emissões radiofônicas de programas policiais recheadas de demagogia visando a ''busca da verdade''. A imprensa marrom tal como é, pode ser considerada o nascedouro das fake news , esse instrumento primordial para se atingir objetivos políticos eleitoreiros da extrema-direita na internet, como fizeram Donald Trump nos EUA e como está fazendo aqui no Brasil, Jair Bolsonaro.

Questionar alguém que vive o cotidiano da violência o porquê de apoiar um candidato a presidente que é assumidamente fascista é desconhecer os mecanismos de exclusão da sociedade brasileira. A violência seja ela simbólica por meio dos aparelhos do Estado, como justiça, polícia militar ou a que é mostrada de forma midiática e que se retroalimenta na espiral infindável que não enxerga (ou não quer enxergar) a raiz matriz dos problemas se segurança pública é há décadas um caldeirão de caos que parecia em tempos passados uma possibilidade de vivência apenas na classe trabalhadora em seus roteiros diários nas periferias do Brasil tropical abençoado por Deus. A classe média, média-alta e elites sempre se respaldaram em produtos midiáticos distanciados da realidade da escatologia do universo oferecido da imprensa marrom de jornais sanguinários e de programas eletrônicos do rádio e da tv que se alimentam do sensacionalismo - o dono da rádio Jovem Pan, Tuta Amaral, uma vez afirmou que os resultados do Ibope eram errados porque as ouvintes não permitiam que as empregadas atendessem os questionários de audiência nas portarias de prédios de alto padrão da burguesia paulistana, dando à sua rádio índices menores dos reais, segundo seu raciocínio, que indica elitismo/classismo.

O bolsonarista que não tem medo do Bolsonaro e de seu discurso anticivilizatório sempre esteve por aí vivendo o perigo pleno relatado nas mídias marrons, mas com o surgimento das ferramentas digitais de comunicação disponíveis em computadores e telefones móveis conectados com uma gama de aplicativos de difusão de notícias, textos, fotos e vídeos tornou-se de consumidor passivo a protagonista na guerra das fake news e das campanhas de difamação que tanto alavancam a candidatura do opositor de Fernando Haddad.

Aliás, algo que geralmente não é lembrado, inclusive por setores da esquerda, é que o fascismo tem como base o culto ao perigo, já prenunciava o ''Manifesto do Futurismo'' do escritor ítalo-egípcio F.T. Marinetti, porta-voz do movimento, com destaque aos temas originais que são apreciados por Bolsonaro e seus seguidores:

1) Nós queremos cantar o amor ao perigo, o hábito à energia e à temeridade

2) Os elementos essenciais de nossa poesia serão a coragem, a audácia e a revolta. (nota:o voto no fascismo é o voto da revolta)

3) Tendo a literatura até aqui enaltecido a imobilidade pensativa, o êxtase e o sono, nós queremos exaltar o movimento agressivo, a insônia febril o passo ginástico, o salto mortal, a bofetada e o soco (...)

9) Nós queremos glorificar a guerra - única higiene do mundo -, o militarismo, o patriotismo, o gesto destrutor dos anarquistas, as belas ideias que matam e o menosprezo à mulher.

10) nós queremos demolir os museus, as bibliotecas, combater o moralismo, o feminismo e todas as covardias oportunistas e utilitárias.


No contraponto ao fascismo bolsonarista, não há espaço para excitações ou especulações nem recuos,
pois o terreno já é delimitado, pois o fascismo vive de ciclos, assim como os ciclos do capitalismo. Seus adeptos - os que não temem Bolsonaro se encaixam plenamente nos termos daquilo que é almejado pelo ideal fascista: vivem o perigo constantemente, enfatizam a ação sobre a reflexão, usam a audácia e a revolta como instrumento de auto-afirmação, possuem visão pouco elaborada sobre grupos como imigrantes, negros, homossexuais ou mulheres em seus direitos de cidadania, são anti-utilitários (no sentido filosófico do utilitarismo, ou seja a ação ética visando o benefício de maior número de pessoas).

Para vencer o fascismo deve-se lembrar sempre do tempo-ação/resposta, pois pode-se vencer pela fadiga apenas sabendo dos movimentos e investidas do opositor sem divagar em demasia, apenas analisando os passos do adversário. As redes sociais e aplicativos como o Whats up são prova de que sistematicamente os fascistas tem feito jus às palavras provocadoras do manifesto de Marinetti que explica arrogante as qualidades espartanas dos adeptos da ideologia de Bolsonaro e seus destemidos seguidores:

Olhem-nos! nós não estamos esfalfados...Nosso coração não tem a menor fadiga! Porque ele está nutrido pelo fogo, pelo ódio e pela velocidade!...Isso o espanta? É que você não se lembra mesmo de ter vivido. De pé sobre o cimo do mundo, nós lançamos ainda uma vez mais o desfio às estrelas!

Este é o perfil de quem não tem medo do Bolsonaro: destemido, arrogante e adepto da velocidade a todo custo. E a ação é a palavra-chave no mundo da informação instantânea que pode e deve ser utilizada como contra-ofensiva às investidas fascistas que ameaçam a democracia brasileira.


Fonte:
TELES, Gilberto Mendonça, Vanguarda Europeia & Modernismo Brasileiro: Apresentação crítica dos principais manifestos vanguardistas. José Olímpio Editora, 2012

23 de out. de 2017

Temer e a pobreza tipo exportação

Nota: O texto do New York Times, produzido pela Associated Press traz o quadro lastimável da situação econômica do Brasil sob perspectiva estrangeira. Fala dos avanços sociais no período que é classificado como ''boom econômico'' (2003-2014) quando notou-se aumento da renda e acesso a bens de consumo em parte alavancados pelas políticas de distribuição de renda juntamente com o quadro favorável na venda de commodities no exterior resultando em geração de empregos. Sobre o quadro atual, fala da redução nos programas sociais do governo direitista de Temer junto com congelamento de verbas da saúde e educação e de uma possível volta da esquerda ao governo federal. 



Milhões retornam à pobreza no Brasil, diluindo a década do crescimento.


(Associated Press, 23/10/2017)


RIO DE JANEIRO - Quando Leticia Miranda conseguiu um emprego vendendo jornais nas ruas, ganhava por volta de R$ 550 por mês, o suficiente para pagar um pequeno apartamento em que vivia com seu filho de oito anos em uma região carente do Rio de Janeiro.

Quando perdeu o trabalho seu trabalho por volta de seis meses atrás, no meio da pior crise do país em décadas, Letícia não teve opção a não ser mudar para um prédio abandonado onde outras centenas de pessoas viviam. Todas as suas coisas - uma cama, geladeira, fogão e algumas roupas - foram colocadas em uma sala junto com pertences dos outros habitantes do prédio que tem janelas sem vidro. Os moradores tomam banho em tonéis e fazem o que podem para viver com o cheiro de montanhas de lixo e porcos passeando no meio da construção.

"Eu quero sair daqui, mas não tenho para onde ir'', diz Letícia, 28 anos vestida com um top, short e sandálias por causa do calor. ''Estou buscando trabalho e fiz duas entrevistas e até agora, nada.''

Entre 2004 e 2014, milhões de brasileiros saíram da pobreza e o país era frquentemente citado como um exemplo para o mundo. O alto preço de commodities e a descoberta de novas fontes de combustível ajudaram a financiar programas de bem estar social que colocaram renda nos bolsos dos mais pobres.

Mas essa tendência foi revertida nos últimos dois anos devido a maior recessão da história do Brasil e cortes nos programas de subsídios fizeram surgir o receio de que o país-continente havia perdido o foco no combate à desigualdade e voltando aos tempos coloniais.

''Muitas pessoas que cresceram fora da pobreza e até mesmo aquelas nascidas na classe média, recuaram'', diz Monica de Bolle, pesquisadora associada do Instituto Peterson de Economia Internacional com sede em Washington.

O Banco Mundial estima que por volta de 28,6 milhões de Brasileiros saíram da pobreza entre 2004 e 2014. Entretanto o banco calcula que desde o início de 2016 até o final deste ano, entre 2,5 milhões a 3,6 milhões de pessoas voltaram a linha da pobreza com ganhos de R$140 mensais, cerca de US$ 44 de renda com câmbio atual.

Estes números são subestimados segundo Monica e não mostram que o fato de muitos brasileiros da classe média baixa que ganharam espaço durante os anos de crescimento decaíram para o limite próximo à pobreza.

Os economistas dizem que o alto desemprego e cortes nos programas-chave de bem-estar social podem aumentar os problemas. Em julho, último mês em que os dados foram coletados, o desemprego estava perto dos 13%, um grande aumento em relação aos 4% do final de 2004.

Filas de desempregados entre vários quarteirões se tornaram rotina quando alguma empresa inicia atividades. Quando, neste mês, uma universidade do Rio ofereceu trabalhos de baixa complexidade pagando R$ 400 de salário, milhares de pessoas se candidataram, inclusive gente que ficou do lado de fora durante um dia chuvoso antes da abertura das inscrições.

Enquanto isto, prressões orçamentárias e políticas conservadoras do presidente Michel Temer estão se traduzindo em cortes nos serviços sociais. Entre estes atingidos está o Bolsa Família, programa que dá pequenos subsídios mensais para pessoas de baixa renda e que é tido como redutor da pobreza do Brasil durante a última década.

Subsídios, incluindo programas sociais como o Bolsa-Família foram responsáveis por aproximadamente 60% de redução do número de pessoas vivendo na extrema pobreza durante o boom recente, disse Emmanuel Skoufias, economista do Banco Mundial e um dos autor do relatório sobre os ''novos pobres'' do Brasil.

Agora, com a perda de empregos impulsionando pessoas para o programa, poucas estão sendo auxiliadas.

''Todo dia é uma luta para sobreviver,'' diz Simone Batista de 40 anos enquanto lágrimas correm por sua face enquanto relembra que foi cortada do Bolsa Família depois que seu filho - agora com um ano - nasceu. Ela quer recorrer, mas não tem dinheiro suficiente para a condução até a assistência social no centro da cidade. Simone vive no Jardim Gramacho, uma favela na região norte do Rio, onde ela e centenas de outros moradores excluídos encontram comida procurando entre detritos ilegalmente jogados na área.

Uma pesquisa da Associated Press sobre dados do Bolsa Familia encontrou uma redução de 4 pontos percentuais na cobertura entre maio de 2016, quando Temer tornou-se presidente e maio deste ano. Parte disto deve-se a punições em eventuais fraudes que começaram ano passado. A administração de Temer anunciou que tinha encontrado ''irregularidades'' nos registros de 1,1 milhão de beneficiados cerca de 8% dos 14 milhões de pessoas que recebem o benefício. As infrações vão de fraudes até famílias que estavam ganhando acima de R$150 mensais que é o teto pra receber o benefício.

''O governo não deveria perder o foco na prioridade'' de manter as pessoas longe da pobreza, diz Skoufias, adicionando que o Bolsa Família representou somente 0,5% do PIB nacional e o governo deveria visar disponibilizar mais e não menos recursos ao programa.

Além disso, qualquer discussão de aumento de gastos é certamente vetada no Congresso onde um limite de gastos foi aprovado neste ano e Temer está inclinado a fazer grandes cortes no sistema de previdência. A situação fiscal é ainda pior em muitos estados, incluindo o Rio.

Um ano depois de hospedar os jogos Olímpicos de 2016, o estado do Rio de Janeiro está quebrado e milhares de servidores públicos não estão recebendo salários ou sendo pagos em parcelas. Algumas recursos de verbas para coleta de lixo ou programas de policiamento comunitário tem sido drasticamente reduzidos.

Para muitos que vivem nas centenas de favelas cariocas, uma realidade já difícil parece aumentar o aspecto precário.

Maria da Penha Souza, 59 anos vive com seu filho de 24 em uma pequena casa com telhado de zinco na favela Lins, zona oeste do Rio. Eles querem se mudar poque a casa fica em um morro onde é propenso a deslisamentos perigosos. Mas seu filho não consegue arranjar serviço desde que terminou o serviço militar tempos atrás.

''Eu me mudaria se houvesse um jeito, mas não há, '' diz Maria da Penha que acrescenta: ''Quando chove, não consigo dormir.''

A depressão econômica está abrindo espaço para o retorno político do ex-presidente Luis Inacio Lula da Silva que de 2003 a 2010 presidiu o país em período de prosperidade. Depois de deixar o cargo com índices de aprovação acima dos 80% sua popularidade despencou quando ele e seu partido foram envolvidos em investigações de corrupção. Lula está apelando da acusação de quase 10 anos por corrupção, apesar de ainda liderar de modo consistente nas pesquisas de intenção para as próximas eleições presidenciais. 

Em campanha, Lula promete um retorno aos tempos melhores da economia e na atenção aos pobres.

''O Lula não é apenas o Lula'', diz o ex-presidente em recente comício no Rio, usando o nome que a maioria dos Brasileiros o chamam. ''É uma ideia representada por milhões de homens e mulheres. Preparem-se porque a classe trabalhadora vai voltar a governar este país.''


(Jornalistas da Associated Press: Peter Prengaman do Rio de Janeiro, Sarah DiLorenzo de São Paulo e Daniel Trielli de Washington . O videorrepórter Diarlei Rodrigues no Rio de Janeiro contribui para esta matéria.)

Tradução: Marcos Vinícius Gomes





24 de ago. de 2017

O repugnante Jair Bolsonaro

Nota: Este texto do news.com.au foi redigido antes à eleição de Donald Trump e portanto antes da crise institucional no governo do presidente norte-americano eleito e também antes do emblemático - e inacreditável - discurso racista de Jair Bolsonaro na Hebraica do Rio. Mas é atualizado por circunstâncias e serve de norte para eleitores e cidadãos que queiram se inteirar um pouco mais sobre as ideias do deputado brasileiro que almeja ser um novo salvador da terra brasilis. 


Este é o político mais repulsivo do mundo? 


Gavin Fernando

Senhoras e senhores, conheçam o ''Donald Trump do Brasil''.

Pensando melhor, isto não é justo para o candidato Trump. Perto dos comentários do congressista brasileiro Jair bolsonaro, a infame afirmativa de Donald Trump de ''construir um muro para manter os mexicanos longe'' poderia ter sido entoada pelos filhos do barão Von Trapp em um belo quarteto de cordas.

Há uma imensa lista de afirmações públicas e entrevistas bajuladoras para explicar a notoriedade de Bolsonaro.

O político ultraconservador apoia francamente a tortura. Ele também tem uma perspectiva favorável em relação à odienta ditadura militar que comandou o Brasil por duas décadas.

O parlamentar tem sido frequentemente manchete global por causa de comentários depreciativos sobre pessoas negras, gays e mulheres.

Assim como Trump, Jair Bolsonaro é muito criticado pela mídia da esquerda e, como faz o político norte-americano, tomas as críticas com orgulho.

''Esta ideia de oh, coitadinho do negro, oh, coitadinho do pobre, oh, coitadinho da mulher, oh, coitadinho do indígena, todo mundo é coitado em alguma coisa!", disse à Vice News. "Não pretendo agradar todo mundo.''

Também como Trump, há uma certa possibilidade dele ser eleito presidente do seu país. 

Bolsonaro e as mulheres


A grande mídia começou a se interessar por Bolsonaro há um ano e meio atrás, após seus comentários grosseiros, feitos à parlamentar Maria do Rosário, terem sido gravados pelas câmeras.

Rosário havia protestado contra as violações aos direitos humanos durante a ditadura militar a qual Bolsonaro defende abertamente - violações que incluiam tortura, estupro e assassinatos.

''Fique aí, Mariai do Rosário'', disse o deputado. ''Há poucos dias atrás você me chamou de estuprador. E eu disse que não a estupraria porque você não vale a pena.''

Rosário se sentiu ultrajada e imediatamente deixou o plenário. ''Eu fui atacada como mulher, como membro do Congresso, como mão'', disse. ''Quando chegar em casa, vou ter que explicar isso para minha filha.''. 

Ela afirmou que processaria criminalmente o deputado. 

Mas Bolsonaro foi completamente absolvido. Ele escarneceu a deputada por ter saído, dizendo que ela ''havia fugido do debate''. 

Ele até postou uma foto no Twitter para se vangloriar sobre o incidente que ele descreveu como ele ''colocou Maria do Rosário em seu devido lugar.'' 

Ambos tiveram um confronto parecido em 2008, onde ele a chamou de vadia depois de a deputada tê-lo chamado de violentador.

Deve se salientar que os membros do Congresso Nacional tem imunidade no Brasil, o que significa que os adversários podem dizer o que quiserem sem temerem processos.

Recentemente, a atriz norte-americana Ellen Page entrevistou Bolsonaro para seu documentário Gaycation no site Vice.

Quando Page - que é homossexual - perguntou a ele se ele achava que ela deveria ter apanhado quando criança devido à sua orientação sexual, ele respondeu: ''Você é muito bonita. Se eu fosse um cadete na academia militar e te visse na rua, eu assobiaria para você. Certo? Você é muito bonita.''

Ela olhou para ele atônita e ele não parecia acreditar que havia dito alguma coisa errada.

Bolsonaro e os negros


Em 2011, a cantora e atriz afro-brasileira Preta Gil lhe perguntou o que ele faria se um filho seu se apaixonasse por uma pessoa negra.

Ele respondeu que ''nunca permitiria esse tipo de promiscuidade'', acrescentando que seus filhos ''eram muito bem educados'', como se sugerisse que isso não aconteceria com ele. 

Preta ameçaou processá-lo no final do programa. ''Eu sou uma mulher negra forte'', disse. "Vou levar isso até o fim contra este repugnante deputado que é racista e homofóbico.''

Uma investigação foi iniciada, na qual Bolsonaro afirmou que ele não havia entendido a pergunta. Mas ele conseguiu piorar as coisas - afirmou que sua resposta tosca foi porque pensou que ela estivesse se referindo às pessoas gays, não às negras.

"Se eu fosse racista, não seria louco de declarar isto na televisão.''

Bolsonaro e os homossexuais


A homofobia espalhafatosa é talvez um das mais internacionalmente conhecidas características de Bolsonaro. Ela reflete e instiga um número crescente no país de religiosos conservadores e neonazistas skinheads.

Por outro lado, o Brasil parece assimilar amplamente a homossexualidade. Não há lei proibindo pessoas LGBT de servirem as Forças Armadas e suas leis não proíbem casais do mesmo sexo de adotarem crianças.

Isso também se adequa a uma das festas mais sexualmente liberais no planeta, como o Carnaval. 

Considerando que o país legalizou o casamento entre pessoas do mesmo sexo em 2013, podemos até dizer que os brasileiros são mais progressivos em relação aos homossexuais do que a Austrália.

Entretanto, o Brasil é com frequência citado como o país onde muitos homossexuais são assassinados.

De acordo com a maior e mais ativa associação gay do país, Grupo Gay da Bahia, um membro da comunidade LGBT é assassinado a cada dois dias por causa da homofobia.

De fato, de acordo com a LGBTQ Nation, metado dos episódios de violência contra homossexuais ocorre no Brasil.

Bolsonaro é publicamente homofóbioco e não se constrange com suas posições. Em 2013 o governo visava aprovar um projeto de lei criminalizando a homofobia e que se educassem os jovens brasileiros sobre o mal que ela causa. O deputado quis vetar a lei, fazendo campanha contra ela.

Em 2013 disse que antes preferiria que seu filho morresse um acidente de carro do que se assumisse gay. Ele também disse que a presença de um casal homossexual em sua casa depreciaria o valor do imóvel. 

Existem até reportagens onde ele comparou o casamento entre pessoas do mesmo sexo à pedofilia e encorajou a agressão física em crianças que achassem serem homossexuais.

Em uma entrevista a Stephen Fry no programa ''Out There'' da BBC, Bolsonaro explicou suas crenças e foi questionado se seus comentários não poderiam alimentar a violência anti-gay pelo país.

"Há grupos que querem usar (crimes de ódio a homossexuais) como um exemplo. Pode ser até que nem tenha nada a ver como homossexualidade'', disse.

Isto é rotulado por grupos gays que querem fazer uso do incidente e criar uma história que comova o público.''

Bolsonaro dá a entender que crimes de ódio cometidos contra homossexuais são causados por suas opções sexuais e - ironicamente - nega que exista homofobia no Brasil.

Ele disse que 90% das vítimas gays morrem ''em lugares onde há drogas e prostituição, ou são mortos por seus próprios parceiros.''

''Eu entrei em guerra contra os gays porque o governo propôs campanhas anti-homofobia no ensino fundamental'', disse Bolsonaro. ''O que poderia sem dúvida estimular a homossexualidade em crianças de seis anos de idade. 

''Eles visam nossas crianças para que elas se transformem em adultos gays para satisfazer a sexualidade deles no futurol. Estes são os grupos homossexuais fundamentalistas que estão tentando comandar a sociedade.''Isto não é normal.'' 

Ele diz que o Brasil não está preparado para aceitar a homossexualidade como norma social. ''Nenhum pai teria orgulho em ter um filho gay. Orgulho? Alegria? Celebração se seu filho virar gay? Sem essa.''

Sobre outros questionamentos, ele sempre compara sua repulsa aos homossexuais à repulsa pública do Taliban.

Apesar disto e mesmo abertamente afirmando que ''Nós brasileiros não gostamos de homossexuis'', ele insiste que as pessoas não são discriminadas ou perseguidas por suas orientações sexuias no Brasil. 

Mas, este homem pode se eleger presidente?


A popularidade de Bolsonaro está crescendo, sem dúvida. Sua página no Facebook tem por volta de três milhões de curtidas - cerca de 700 mil a mais do que o ex-presidente Luis Inácio Lula da Silva. Pessoas se ajuntam ao seu redor para tirar selfies quando ele faz aparições públicas e de acordo com pesquisa Datafolha de Maio/2016, sua base de apoiadores tem dobrado desde Dezembro/2015.

Considerando que em 2012, 77% da população apoiava abertamente a criminalização da hommofobia, talvez estes resultados não sejam tão assustadores. A maior ironia de tudo isto? É que o partido político a que pertence Bolsonaro é chamado de ''Partido Progressista''.

(Traduzido por Marcos V. Gomes) 

Fontes

5 de jul. de 2017

O samba da Mallu é vexame, madame

Mallu Magalhães ao dedicar a música ''Você não presta'', cantada ao vivo no ''Encontro'' de Fátima Bernardes, a quem ''é preconceituoso e diz que branco não pode tocar samba", mostrou que sua nova fase não é tão diferente daquela de nove anos atrás, quando a garota desajeitada aparecia em programas cantando suas musiquinhas folk sem rima apesar de ter arranjos aceitáveis para uma composição de alguém na casa dos quinze anos.

Mas o tempo passou e a Mallu que pedantemente quis rebater as opiniões contrárias com o famigerado discurso do ''racismo inverso contra brancos'' e assumindo uma capacidade técnica que não possui, apenas fez aumentar um sentimento de frustração entre eventuais admiradores e até entre seus seguidores/fãs que não encontravam argumentos para uma apresentação tão amadora.
 
Quando surgiu, Mallu cantava exclusivamente em inglês. Diferente do português, onde há predominância na acentuação na última/antepenúltima sílaba, no inglês prioritariamente há o acento na primeira e na segunda sílaba (ou na primeira, quando for palavra monossilábica). Assim é possível encontrar rimas em músicas e versos em português tais como ''amor-dor'', ''viagem-miragem'', ''cor-melhor'' pois todas têm acentuação na última/antepenúltima sílaba. E também pela terminação semelhante, um indicador que geralmente se observa quando se quer rimar palavras o que não ocorre no inglês, necessariamente.

Mallu, de modo relapso, tem usado essa estrutura enxertada nas letras em Língua Inglesa, demonstrando desatenção e pouco apuro na composição de suas músicas. Vejamos alguns exemplos: em sua ''Her Day Will Come" (''O Dia Dela Vai Chegar'') Mallu abusa da falta de métrica em inglês:


She's got an old mobile,
But could receive calls,
She's got a pretty smile, 
But no one gives a hand
When she falls down.
Ela tem um velho celular
E poderia receber chamadas
Ela tem um belo sorriso
Mas ninguém lhe ajuda
Quando ela cai



o problema é que ''mobile'' [móbol] [mobáil] [móbil] tem três pronúncias diferentes então qual delas escolher para rimar com ''smile'' [ismáil]?

Outro exemplo de rima mal feita na mesma música:


She's got a pretty face,
Just waiting a kiss.
She's got her own charm,
But she's never been on the hot list.
Ela tem um belo rosto
Apenas esperando um beijo
Ela tem seu charme só dela
Mas nunca está entre as melhores

Aqui temos ''kiss''[kiz] que não rima em hipótese alguma com ''list'' [list]. Finalizando, temos o trecho que se repete e merece ser citado:

She's hiding all her bubble gum,
Looking for a real chum.
She knows more than anyone,
That her day will come.
Her day will come.
Ela está escondendo toda sua goma de mascar
Buscando por um amigo verdadeiro
Ela sabe mais do que ninguém
Que seu dia vai chegar.
Seu dia vai chegar.

A palavra ''bubble gum'' (chiclete) rima com ''chum'' (camarada). A questão é que é uma rima desconectada de sentido - seria o mesmo que rimar ''broto'' com ''absorto'', palavras dicionarizadas mas sem força semântica no uso atual, principalmente na voz de uma cantora hipster-pop. Mallu usou a rima que vem de ''Got any gum, chum?" (''Tem chiclete, amigo''?) que foi uma pergunta muito utilizada por crianças inglesas durante a Segunda Guerra feita aos soldados americanos que encontravam pelo caminho, visto que havia racionamento de comida e outros produtos básicos de alimentação. Essa frase até virou tema de música composta por Murray Kane in 1944 ''Have Ya Got Any Gum, Chum?". Além disso, há a impossível rima entre ''anyone'' e ''come'', onde ela mais uma vez quis ''aportuguesar'' as rimas de palavras do inglês apenas por uma terminação semelhante entre elas.

A falta de cuidado na composição também acontece nas letras em português. Na inacreditável ''São Paulo'', Mallu abusa do descuido como letrista, escrevendo versos praticamente ''explodidos'' e que necessitam de um esforço vocal que somente seria viável se cantados por cantores líricos. Vejamos:

Sou gata da vida, eu venho do mato
Da selva de pedra, São Paulo
Você que me ature e não há quem segure
A coragem dos meu vinte e quatro

Na estrofe, o segundo e quarto versos estão comprometidos. Quando cantados na gravação, a cantora faz um esforço enorme em ''São Pa-a-a-aulo'' e em ''meus vinte e qua-a-a-tro'', o que soa ruim, deselegante. É uma espécie de falha de ignição vocal que resulta na quebra da frequência da voz e do ritmo. A performance ao vivo é mais sofrível ainda e na terceira estrofe o mesmo vício anterior permanece:

As cartas na mesa, eu aposto em mim mesma
A minha garganta é de prata
Me olha no olho, você não me assusta
A roda da sorte me abraça.

sendo que o segundo verso é cantado ''A minha garganta é de pra-a-a-a-ta'' e no quarto ''A roda da sorte me abra-a-a-a-ça''.

Já em ''Você Não Presta'' o problema é outro, a começar pelo ritmo, que nem samba é, mas que se aproxima de um ska, muito apreciado por bandas de rock nacionais como Paralamas do Sucesso, Skank, etc. A introdução com uma cuíca que beira a cafonice e com metais (!) a se perder de vista e a falta de ritmo sincopado denunciam isto; de percussão o que há uma sonolenta bateria. E, para completar, temos Mallu Magalhães cantando fora do tom tanto no estúdio quanto ao vivo.

Cantores e letristas competentes usam o melhor de si para que sua música se espalhe pelo gosto do público e não fazendo o contrário. Cazuza quando quis enveredar pela bossa nova e pelo samba fez a lição de casa corretamente: bebeu na raiz e não inventando, ouvia ''o morro'' e não seguia modismos (é inimaginável pensar Cazuza dizendo ''Esta é pra quem acha que branco não pode cantar blues, samba, bossa-nova, etc''). Renato Russo que se destacava como letrista, fazia com que letras quilométricas fossem assimiladas pelo público, graças às suas qualidades de compositor que conhecia versificação - como no caso de ''Eduardo e Mônica'' que foi escrita em versos de sete sílabas, usado por repentistas e que facilitam a memorização.

Mallu Magalhães deveria se esforçar mais, pois afinal é alma gêmea de Marcelo Camelo, cantor que quando no tempo dos ''Los Hermanos'' sempre quis ser classudo, assumindo um lado virtuose da MPB - que, evidente, era superestimado, apesar das qualidades. Com o fim do grupo ele casou e se associou a Mallu em projetos que não chegam nem perto de cantores de rock que enveredaram por algo menos híbrido (como o próprio Cazuza) e mais ''raiz''. Pelo que temos visto, esse quadro não mudará facilmente - tanto pela imagem millennial de Mallu, quanto pela falta de perspectiva pragmática possivelmente vinda do marido, mas ligado a cultura de DCE, médio-classista e alienada do mundo, da cultura e das opiniões das classes marginalizadas, tais como os negros ''cutucados'' infantilmente por Mallu. Se continuar assim, a sra. Camelo estará personificando, infelizmente, a personagem ''madame'' de João Gilberto mas só que do lado de dentro, fazendo vexame e distribuindo música ruim na Terra Brasilis.


Fontes:

4 de out. de 2016

O caviar reacionário de João Dória

Ao discursar na sede do PSDB comemorando sua vitória sobre Fernando Haddad na disputa pela prefeitura de São Paulo, João Dória Jr. fez o que todo político faz, porém com um ingrediente especial. Este ingrediente foi o apelo veemente pelo imperativo moral alicerçado em pessoas que não fazem mais parte do mundo dos vivos, além do uso do discurso piedoso-cristão remetendo-se a uma religiosidade improvável , principalmente quando o prefeito eleito é lembrado em suas performances no seu programa de entrevistas ''Show Business'', no reality-show ''O Aprendiz'' (quando fez uma versão ''queridinha da vovó'' do programa), ou ainda em seus empreendimentos impressos, entre os quais a nada transcendental revista Caviar Lifestyle.

Há que se destacar que políticos em seus discursos vitoriosos sempre recorrem à lembranças de lideranças, familiares e correligionários que já faleceram, trazendo para si a responsabilidade de prosseguir com seus legados para as futuras gerações, não sendo nada de excepcional tal ato. Mas no caso de João Dória, a rememoração vai além da mera dedicatória in memoriam justificável no
calor da emoção que o momento exige. Ela dá uma pista dos reais motivadores de sua vitória, consequência de uma guinada recente de seu partido rumo à extrema direita no campo político, renegando uma perspectiva da administração atual baseada em conquistas sociais como diretriz de políticas públicas e de uma visão menos utilitarista e imediatista de se fazer política.

Dória, evidentemente, foi vitaminado (52% dos votos) pela parcela mais conservadora do eleitorado paulistano, aquela mesma que de panelas em punho foi recorrentemente vista nos últimos meses nas sacadas gourmet dos elegantes condomínios fechados da capita
l bandeirante, como signo de desaprovação de um governo democraticamente eleito com uma plataforma social que destoava do ideário de sustentação deste mesmo eleitorado paulistano médio-classista / alto-médio-classista. Os ''coxinhas-paneleiros'' foram o símbolo da discordância e da dissonância social sempre engambelada pelos discursos midiáticos de um Brasil harmonioso e das análises dos processos históricos direcionadas por uma pretensa conciliação de classes: eles tinham percebido o quão danoso para suas castas privilegiadas seria permanecer passivos diante um projeto de ínfimas proporções que buscava a instituição da justiça social e da ampliação de horizontes para uma grande parte da população brasileira frequentemente legada a último plano pelos donos do poder desde tempos imemoriais. 

Assim, nada mais adequado para João Dória do que entrar em sintonia com o que o pensamento mediano paulistano mais queria. Mas para atingir esta meta, não bastaria endossar o fim do ciclo de governança de um partido subversivo (!) que,
segundo a mentalidade política pouco elaborada da parte ressentida, estaria sendo responsável pela destruição da nação com esquemas de corrupção e jogadas políticas nunca antes vistas nas terras macunaímicas. Seria necessário mais do que isto, seria preciso um instrumento psicológico em consonância com os anseios dessa população seleta tão deseperada e que estava vendo seus sonhos de gente de bem irem pelo ralo com o surgimento de uma outra gente que já não aceitava ser tratada como extensões simbólicas de uma genealogia associada aos escravos trazidos do continente africano para sustentar as elites. E, para combater o pensamento progressista, nada mais adequado do que se apropriar do discurso da contrapartida do pensamento reacionário.

Como intrumento antiprogressista, o ideário reacionário é a estratégia mais elementar para estancar a ruptura das estruturas, fazendo com que coletivamente haja o deslocamento da condução dos anseios de um povo para o campo obtuso e refreador das ideias conservadoras. O reacionário é antes de tudo negador daquilo que se chamou entre o século 18
de Iluminismo, que é a base para a civilização ocidental contemporânea no campo filosófico, político e social. E para atigir este patamar de negação iluminista, o reacionário busca na regressão histórica, na simbologia mítico-religiosa e nacionalista e na tradição o material para suas teses, encontrando no pantanoso campo da negação da razão o instrumento de condução rumo à felicidade (no sentido filosófico) humana, o seu farol existencial. 

Daí o uso do discurso ''político-transcendental'' proferido por Dória quando, numa mistura entre emocionado e empolgado, agradecia àqueles que lhes ajudaram a vencer o adversário Haddad por meio de seus ensinamentos dados enquanto vivos, somado às referências à simbologias
religiosas como por exemplo a oração como elemento de conduta política ética — ''Eu sempre oro''— afirmou extasiado, como se justificasse a si e aos presentes sua missão suprema de libertador escolhido, recompensado apenas por ter feito preces ao ser supremo. Estes são indícios da direcionalidade de seu repertório político ao encontro da parcela reacionária dos eleitores da cidade de São Paulo e isto sob as bençãos políticas do já piedoso governador Geraldo Alkmin, conhecido político ligado a setores mais reacionários da Igreja Católica, como a Opus Dei.

Cabe ressaltar que nem todo crente é reacionário, mas todo reacionário tem sua fé afirmada, nem que o seja de modo utilitarista. Deve-se a este fenômeno pelo fato da fé do reacionário ser em busca de um imperativo moral acima da razão, nem que para isto haja a necessidade de instrumentalizar a religião (e por conseguinte a moral), negando o seu uso como ''testemunho de vida''— pois reacionários são gregários e pouco dados a individualidades subjetivas notadas até mesmo no cristianismo da Idade Média. Isso explica o fato de políticos de extrema-direita como Jair Bolsonaro terem de um lado um discurso de essência anticristã (racista, misógino, intolerante, virulento) e de outro lado serem ''propagadores'' do ideário do cristianismo como exclusivo meio de conduta moral e de vida, exaltando suas pretensas virtudes, evidentemente moldadas às suas práticas pessoais religiosas pouco ou nada ortodoxas.

Fechando o pacote reacionário na fala de Dória, houve ainda a exaltação a simbolos nacionalistas, como a bandeira nacional, junto com a cafonice — algo recorrente no discurso conservador — de fechar seu discurso tocando o ''Tema da Vitória'' dedicado ao falecido piloto Ayrton Senna e repetindo ao fundo o slogam ''Acelera! Acelera! Acelera!''. Senna, sabemos, foi elencado goela abaixo pela Vênus Platinada como ícone esportivo de uma nação e é tido como referencial de caráter e determinação, um lugar comum nas referências bibliograficas no campo da autoajuda empresarial ou espiritual. O piloto, neste contexto, se encaixa perfeitamente em todo este repertório antiprogressista vislumbrado por Dória, pois ícones da sociedade do marketing são apaixonadamente admirados e potencializados ao extremo ainda mais quando atingem o grau de mitos humanos ao terem suas trajetórias marcadas pela tragédia, sejam eles desportistas, artistas, políticos ou empresários. O inexplicável é o alimento da mente reacionária. 

Aliás, nada mais mitológico — leia-se falso — do que a improvável eleição de um candidato que sempre transitou nos campos do poder político, tendo sido até secretário de estado e que se elegeu com um discurso onde nega a própria política. Que apregoa a ética, mas que se apossou de uma área pública em Campos do Jordão como se fosse sua. Que se arroga como empreendedor liberal e que sempre recebeu polpudas verbas estatais para seus empreendimentos. Que diz que não recebeu herança mesmo sendo descendente de família historicamente rica e dona de engenhos desde os tempos coloniais. Estes qualificantes, evidente, passarão batidos pelos eleitores, pois a tarefa maior de Dória é apagar o progressismo e mitologicamente trazer a velha política com ares de novidade para satisfação coletiva. Na terra que se esforça frequentemente para divulgar seus tradicionais mitos duvidosos — indo da ''Revolução'' de 1932, passando pelos desbravadores bandeirantes e de ser a locomotiva da nação — isto, provavelmente, não será tarefa muito difícil de se realizar.

27 de set. de 2016

O PowerPoint da injustiça

Nota: O uso do PowerPoint como recurso visual visando potencializar indícios comprometedores e induzir a opinião pública sobre a culpabilidade dos réus no processo da ''Lava Jato'' , feito por Deltan Dallagnol com grande estardalhaço, não é invenção do Ministério Público Federal de Curitiba. O procurador skatista se espelhou em uma prática já recorrente nos EUA, onde promotores usam slides com diagramações tendenciosas, frases de efeito retiradas de filmes blockbusters entre outros recursos puramente visuais para fomentar a percepção de dolo nos tribunais — além de estratégias antiéticas para manipular o corpo de jurados. Estas práticas, como não poderia ser diferente, tem sido criticadas por especialistas norte-americanos. O texto abaixo é uma tradução de um artigo do site Wired.

Por Ken Armstrong

No estado de Washington no início deste mês, uma corte de apelação rejeitou uma acusação de assassinato baseados em um trabalho capenga de defesa. Além disto a corte também levou o promotor a perguntar sobre algo muito estranho: uma má apresentação em PowerPoint.

O promotor tinha enfeitado seus argumentos conclusivos para o júri com uma série de slides recheados ''com efeitos sonoros e animação'', escreveu a corte de apelação. Em um dos slides, pegadas eram mostradas ao fundo da tela. Outros slides exibiam ''anéis concêntricos num alvo'' com cada anel correspondendo a uma evidência; o nome do acusado, Sergey Fedoruk estava no centro. O slide final da acusação — a cereja do bolo — foi aberto com os dizeres ''Assassino nº2''. Então, debaixo da legenda, uma única palavra piscava em letras maiúsculas, no formato 96 em vermelho: ''CULPADO''. Enquanto as letras piscavam, o promotor dizia ao juri: ''O acusado é culpado, culpado, culpado.''

Pelo menos em 10 vezes nos últimos dois anos, cortes norte-americanas reverteram condenações porque os promotores haviam violado as regras do argumento justo usando o PowerPoint. E em muitos casos uma corte de apelação observou tais erros de conduta enquanto sustentava a acusação mesmo assim ou enquanto a revertia para outros campos (como ocorreu com  o caso de Sergey Fedoruk). Observadores legais tem relatado há tempos que os promotores usam várias formas de, sorrateiramente,  adulterarem a balança da justiça — tal como esconder evidências abonadoras, eliminar membros do corpo de jurados baseados em raça e entre outras coisas. Agora eles podem acrescentar outra categoria: acusação por PowerPoint. ''Isto é o clássico Uma imagem vale mais do que mil palavras '', disse Eric Broman, um advogado de Seattle que atua em apelações criminais. ''Até onde as cortes digam onde estão os limites, os promotores continuaram a testar estes limites''.

Talvez o mau uso mais comum daquilo que alguns juristas chamam ''advocacia visual'' é a diagramação da palavra ''Culpado'' sobre a foto do acusado. Quase sempre as letras são vermelhas — a ''cor do sangue e a cor usada para denotar perdas'', como uma corte escreveu. Dois meses atrás a Corte de Apelações do estado de Missouri julgou um caso onde a acusação no desfecho da argumentação apresentou um slide usando esta diagramação.

O réu Chadwick Leland Walter havia sido acusado por fabricação de metanfetamina e de subversão da ordem pública. A foto usada para o slide era do arquivo prisional de fotos de Walter — daí a roupa laranja de detento. Como a corte de apelação notou, o estado não poderia forçar Walter a aparecer perante o juri em roupa de presidiário, porque aquilo poderia diluir a presunção de inocência; e o uso  do arquivo legal de fotos pela promotoria teve o mesmo efeito. A corte de apelação disse que é um ''desprezo à lógica'' que um promotor efetue um julgamento equivocado usando uma tática tão ''odienta''. Entretanto a corte reafirmou a culpa de Walter porque o advogado de defesa não apelou até mesmo depois do veredito e porque a evidência de acusação era ''avassaladora'' fazendo com que uma conduta errada de julgamento fosse desconsiderada como fator decisivo.

Em um caso fora da comarca de Pierce, Washington, os promotores foram além. Edward Glasmann foi acusado de assalto, roubo, sequestro e por obstruir um policial. Quando a polícia o prendeu, usaram um revólver de choque que foi dispado em sua cabeça. No argumento final, os promotores usaram o arquivo legal de fotos de Glasmann em três slides consecutivos. No primeiro foi sobreposto — diagonalmente — a palavra "CULPADO" (''GUILTY") em cima da face desfigurada do acusado. No seguinte slide adicionou-se uma segunda diagonal ''CULPADO" formando um X. O último slide mostrou mais um ''CULPADO", este disposto horizontalmente. Não pudemos obter as versões coloridas dos slides (a cor das letras era vermelha, ressalte-se), mas existe uma versão das fotos em branco-e-preto.

Em dezembro de 2012 a Suprema Corte de Washington anulou a acusação de Glasmann baseada nos slides ''altamente sensacionalistas''. Como regra geral, as cortes não querem que promotores expressem suas opiniões pessoais para um juri; deles se esperam que expressem seus argumentos baseados naquilo que as evidências mostram. Colocar a palavra ''CULPADO" em um slide — não uma ou duas, mas três vezes — foi uma ''flagrante e mal intencionada'' violação deste princípio, sentenciou a Suprema Corte de Washington. As legendas sobrepostas nas fotos foram ''equivalentes a evidência sem valor''.

Um juiz, Tom Chambers, escreveu que ficou estupefato com a argumentação do estado de que não havia nada de errado com alterações digitais do álbum do acusado. ''Sob a lógica do estado, em um caso de disparo por arma de fogo, não haveria nada de impróprio com o fato do Estado alterar uma imagem do acusado com Photoshop colocando uma arma em sua mão'', Chambers escreveu.

Jeffey Ellis, um advogado de Portland, Oregon representou Glasmann em apelação. "Nós sabemos todos que a publicidade pode tentar persuadir as pessoas em níveis de subconsciência'', disse Ellis em uma entrevista. ''Mas não penso que o sistema da justiça criminal queira entrar neste campo de batalha.'' Este ano, em Junho, Ellis ganhou em outra apelação que desafiou o uso dos promotores com PowerPoint. O cliente de Ellis naquele caso, Jay Earl McKague tinha sido acusado em Washington por roubo a residência e assalto — e sentenciado como um criminoso não primário sem direito a liberdade condicional. Uma corte de apelação de Washington revogou a sentença por causa de um slide que mostrava o acusado com a legenda ''CULPADO'' colocada sobre seu rosto centralizado em um esquema de acusações disponibilizadas em círculo tais como ''pegou um balde de ostras'', ''praticou lesão corporal'', ''ofereceu forte resistência'', ''usou da força para obstruir a lei'', ''premeditou o roubo à casa'', '''o acusado lançou mão de força na captura'', etc.

A corte denominou este slide — composto de um retrato de McKague tirado por uma câmera de segurança —''um artifício calculado usado pelo promotor para manipular a deliberação racional do juri e prejudicar sua função elucidadora  dos fatos.''

Os promotores, por sua vez, reconhecem que eles precisam tomar o mesmo cuidado com seus recursos visuais como eles fazem com o discurso falado. ''O apelo visual são uma parte de qualquer acusação moderna '', disse o promotor público do condado de Pierce, Mark Lindquist em entrevista. ''Nós usamos agora o PowerPoint no lugar de giz e lousa. Mas as ideias básicas permanecem as mesmas.'' Assim como os promotores há 30 anos atrás não podiam escrever em um exibição em tinta vermelha, eles não podem fazer isto hoje com um software, disse, adicionando: ''Novas ferramentas, velhas regras.''

O uso de recursos visuais sofisticados no tribunal se expandiu nos últimos anos, graças às pesquisas sobre o poder do método pedagógico infantil do ''aponte-e-fale''. A empresa de consultoria em julgamentos DecisionQuest diz aos advogados que quando eles dão aos jurados infomações verbais, somente 10 por cento do juri retêm estas informações após três dias. Mas se os advogados providenciam informações visuais, a retenção dos jurados sobre para 65 por cento. Os advogados sejam em casos civis ou criminais tem aproveitado desta vantagem, integrando recursos visuais indo de simples slides a gráficos animados em suas apresentações nos tribunais. Em um caso de processo civil na comarca de Los Angeles, um querelante gastou US$ 60,000 em um slide show com PowerPoint. 

Os promotores, enquanto isto, têm usado slides em uma variedade de formas criativas, desde mostrar uma faca de açougueiro ensanguentada em uma tela de 1,50 cm x 1,50 cm (no Missouri), passando a citações de Marlon Brando de ''O Poderoso Chefão'' (no Havaí), até descrever o réu como a personificação do diabo  — isto aconteceu em Ohio, onde uma corte do estado se referiu a imagem como um ''flagrante excesso dos limites do profissionalismo e do decoro'', mas que manteve a acusação assim mesmo.

Em 2003 o setor de treinamento da Associação Nacional dos Advogados Distritais — ''Escola Americana de Promotores'' como eles se autodenominam — publicou um livro de 290 páginas que ensina aos promotores como usar os recursos visuais. Em uma tentativa de rigor, o livro diz, ''descarte as cores delicadas''. Piadas nada sutis se destacam entre as lições; um dos gráficos mostra a evidência em uma fatia de pão: ''SE VOCÊ CORTÁ-LO, O ACUSADO SERÁ CULPADO''.  Em outro gráfico, que resume as evidências da promotoria em tijolos empilhados, lê-se: ''O TEXTO ESTÁ NA PAREDE". Os truques verbais — ''impactantes para os jurados'' — funcionam bem especialmente com slideshow, recomenda o livro, que dá o exemplo da palavra ''CULPADO'' (em inglês ''GUILTY") — neste caso um acrônimo reunindo expressões no idioma como ''deu um falso nome ao policial'', ''não explicou o que fazia ali'', ''eu não sei o que tem na mala'', ''deixou a cena do crime depressa'', ''a droga não é minha'' e ''você não confia nos agentes''.

O livro tem várias ilustrações criativas (e por vezes questionáveis) que fazem uso de um retrato prisional — colocando tudo centralizado, como se fosse um alvo — e dá muitas sugestões de visualização do conceito de ''razoabilidade da dúvida'', um conceito que tem posto promotores em apuros com as cortes de apelação inúmeras vezes. Um recurso citado lembra o game-show norte-americano  ''Roda da Fortuna'' (no Brasil, ''Roda a Roda Jequiti''), sugerindo slides que remontem a um painel da atração televisiva, deixando algumas palavras-chave retiradas da frase ''O Réu é Culpado'' e pedindo aos jurados que tentem resolver o jogo. 

Outro estilo de acusação pelo PowerPoint: slides que tentam explicar princípios legais. Dois meses atrás, uma corte de apelação em Nova Jersey lançou duas acusações de assalto em um caso onde o acusado dizia que tinha medo de ser linchado. No argumentação final, o promotor apresentou slides com ''trechos sobre a lei de legítima defesa que eram tão simplórias quanto enganosas'', a corte relatou. ''O mais grave, estas simplificações extremadas proporcionavam conteúdo de apelo ''fast-food'' , como aqueles ensinados nas apresentações de PowerPoint habilmente propostos.'' 

Talvez por coincidência, o estado onde os promotores tiverem mais problemas devido ao uso equivocado dos slides é Washington — terra da Microsoft, a fabricante do PowerPoint. Desde Agosto de 2012, as cortes de apelação reverteram pelo menos sete casos no estado. Algumas centradas em imagens sensacionalistas; em outras os promotores usaram slides que descaracterizavam além do tolerável o padrão da razoabilidade da dúvida ou infringiam o direito do réu de ficar em silêncio, e acordo com as regras da apelação.

Os juízes também criticaram os promotores da comarca de Pierce em casos onde as convicções se mantinham. No último ano, por exemplo, a Corte de apelações estadual manteve a condenação de assassinato para Odies Delandus Walker, apesar de acharem que os promotores usaram inadequadamente fotos modificadas que tinham sido aceitas como prova. Em dois slides, a promotoria usou linguagem chula em cima da foto prisional de Walker.

Este artigo foi redigido pelo Projeto Marshall, uma organização sem fins lucrativos que cobre o sistema da justiça criminal nos Estados Unidos. 
(Tradução: Marcos Vinícius Gomes)


Fonte
https://www.wired.com/2014/12/prosecutors-powerpoint-presentations/