27 de set. de 2016

O PowerPoint da injustiça

Nota: O uso do PowerPoint como recurso visual visando potencializar indícios comprometedores e induzir a opinião pública sobre a culpabilidade dos réus no processo da ''Lava Jato'' , feito por Deltan Dallagnol com grande estardalhaço, não é invenção do Ministério Público Federal de Curitiba. O procurador skatista se espelhou em uma prática já recorrente nos EUA, onde promotores usam slides com diagramações tendenciosas, frases de efeito retiradas de filmes blockbusters entre outros recursos puramente visuais para fomentar a percepção de dolo nos tribunais — além de estratégias antiéticas para manipular o corpo de jurados. Estas práticas, como não poderia ser diferente, tem sido criticadas por especialistas norte-americanos. O texto abaixo é uma tradução de um artigo do site Wired.

Por Ken Armstrong

No estado de Washington no início deste mês, uma corte de apelação rejeitou uma acusação de assassinato baseados em um trabalho capenga de defesa. Além disto a corte também levou o promotor a perguntar sobre algo muito estranho: uma má apresentação em PowerPoint.

O promotor tinha enfeitado seus argumentos conclusivos para o júri com uma série de slides recheados ''com efeitos sonoros e animação'', escreveu a corte de apelação. Em um dos slides, pegadas eram mostradas ao fundo da tela. Outros slides exibiam ''anéis concêntricos num alvo'' com cada anel correspondendo a uma evidência; o nome do acusado, Sergey Fedoruk estava no centro. O slide final da acusação — a cereja do bolo — foi aberto com os dizeres ''Assassino nº2''. Então, debaixo da legenda, uma única palavra piscava em letras maiúsculas, no formato 96 em vermelho: ''CULPADO''. Enquanto as letras piscavam, o promotor dizia ao juri: ''O acusado é culpado, culpado, culpado.''

Pelo menos em 10 vezes nos últimos dois anos, cortes norte-americanas reverteram condenações porque os promotores haviam violado as regras do argumento justo usando o PowerPoint. E em muitos casos uma corte de apelação observou tais erros de conduta enquanto sustentava a acusação mesmo assim ou enquanto a revertia para outros campos (como ocorreu com  o caso de Sergey Fedoruk). Observadores legais tem relatado há tempos que os promotores usam várias formas de, sorrateiramente,  adulterarem a balança da justiça — tal como esconder evidências abonadoras, eliminar membros do corpo de jurados baseados em raça e entre outras coisas. Agora eles podem acrescentar outra categoria: acusação por PowerPoint. ''Isto é o clássico Uma imagem vale mais do que mil palavras '', disse Eric Broman, um advogado de Seattle que atua em apelações criminais. ''Até onde as cortes digam onde estão os limites, os promotores continuaram a testar estes limites''.

Talvez o mau uso mais comum daquilo que alguns juristas chamam ''advocacia visual'' é a diagramação da palavra ''Culpado'' sobre a foto do acusado. Quase sempre as letras são vermelhas — a ''cor do sangue e a cor usada para denotar perdas'', como uma corte escreveu. Dois meses atrás a Corte de Apelações do estado de Missouri julgou um caso onde a acusação no desfecho da argumentação apresentou um slide usando esta diagramação.

O réu Chadwick Leland Walter havia sido acusado por fabricação de metanfetamina e de subversão da ordem pública. A foto usada para o slide era do arquivo prisional de fotos de Walter — daí a roupa laranja de detento. Como a corte de apelação notou, o estado não poderia forçar Walter a aparecer perante o juri em roupa de presidiário, porque aquilo poderia diluir a presunção de inocência; e o uso  do arquivo legal de fotos pela promotoria teve o mesmo efeito. A corte de apelação disse que é um ''desprezo à lógica'' que um promotor efetue um julgamento equivocado usando uma tática tão ''odienta''. Entretanto a corte reafirmou a culpa de Walter porque o advogado de defesa não apelou até mesmo depois do veredito e porque a evidência de acusação era ''avassaladora'' fazendo com que uma conduta errada de julgamento fosse desconsiderada como fator decisivo.

Em um caso fora da comarca de Pierce, Washington, os promotores foram além. Edward Glasmann foi acusado de assalto, roubo, sequestro e por obstruir um policial. Quando a polícia o prendeu, usaram um revólver de choque que foi dispado em sua cabeça. No argumento final, os promotores usaram o arquivo legal de fotos de Glasmann em três slides consecutivos. No primeiro foi sobreposto — diagonalmente — a palavra "CULPADO" (''GUILTY") em cima da face desfigurada do acusado. No seguinte slide adicionou-se uma segunda diagonal ''CULPADO" formando um X. O último slide mostrou mais um ''CULPADO", este disposto horizontalmente. Não pudemos obter as versões coloridas dos slides (a cor das letras era vermelha, ressalte-se), mas existe uma versão das fotos em branco-e-preto.

Em dezembro de 2012 a Suprema Corte de Washington anulou a acusação de Glasmann baseada nos slides ''altamente sensacionalistas''. Como regra geral, as cortes não querem que promotores expressem suas opiniões pessoais para um juri; deles se esperam que expressem seus argumentos baseados naquilo que as evidências mostram. Colocar a palavra ''CULPADO" em um slide — não uma ou duas, mas três vezes — foi uma ''flagrante e mal intencionada'' violação deste princípio, sentenciou a Suprema Corte de Washington. As legendas sobrepostas nas fotos foram ''equivalentes a evidência sem valor''.

Um juiz, Tom Chambers, escreveu que ficou estupefato com a argumentação do estado de que não havia nada de errado com alterações digitais do álbum do acusado. ''Sob a lógica do estado, em um caso de disparo por arma de fogo, não haveria nada de impróprio com o fato do Estado alterar uma imagem do acusado com Photoshop colocando uma arma em sua mão'', Chambers escreveu.

Jeffey Ellis, um advogado de Portland, Oregon representou Glasmann em apelação. "Nós sabemos todos que a publicidade pode tentar persuadir as pessoas em níveis de subconsciência'', disse Ellis em uma entrevista. ''Mas não penso que o sistema da justiça criminal queira entrar neste campo de batalha.'' Este ano, em Junho, Ellis ganhou em outra apelação que desafiou o uso dos promotores com PowerPoint. O cliente de Ellis naquele caso, Jay Earl McKague tinha sido acusado em Washington por roubo a residência e assalto — e sentenciado como um criminoso não primário sem direito a liberdade condicional. Uma corte de apelação de Washington revogou a sentença por causa de um slide que mostrava o acusado com a legenda ''CULPADO'' colocada sobre seu rosto centralizado em um esquema de acusações disponibilizadas em círculo tais como ''pegou um balde de ostras'', ''praticou lesão corporal'', ''ofereceu forte resistência'', ''usou da força para obstruir a lei'', ''premeditou o roubo à casa'', '''o acusado lançou mão de força na captura'', etc.

A corte denominou este slide — composto de um retrato de McKague tirado por uma câmera de segurança —''um artifício calculado usado pelo promotor para manipular a deliberação racional do juri e prejudicar sua função elucidadora  dos fatos.''

Os promotores, por sua vez, reconhecem que eles precisam tomar o mesmo cuidado com seus recursos visuais como eles fazem com o discurso falado. ''O apelo visual são uma parte de qualquer acusação moderna '', disse o promotor público do condado de Pierce, Mark Lindquist em entrevista. ''Nós usamos agora o PowerPoint no lugar de giz e lousa. Mas as ideias básicas permanecem as mesmas.'' Assim como os promotores há 30 anos atrás não podiam escrever em um exibição em tinta vermelha, eles não podem fazer isto hoje com um software, disse, adicionando: ''Novas ferramentas, velhas regras.''

O uso de recursos visuais sofisticados no tribunal se expandiu nos últimos anos, graças às pesquisas sobre o poder do método pedagógico infantil do ''aponte-e-fale''. A empresa de consultoria em julgamentos DecisionQuest diz aos advogados que quando eles dão aos jurados infomações verbais, somente 10 por cento do juri retêm estas informações após três dias. Mas se os advogados providenciam informações visuais, a retenção dos jurados sobre para 65 por cento. Os advogados sejam em casos civis ou criminais tem aproveitado desta vantagem, integrando recursos visuais indo de simples slides a gráficos animados em suas apresentações nos tribunais. Em um caso de processo civil na comarca de Los Angeles, um querelante gastou US$ 60,000 em um slide show com PowerPoint. 

Os promotores, enquanto isto, têm usado slides em uma variedade de formas criativas, desde mostrar uma faca de açougueiro ensanguentada em uma tela de 1,50 cm x 1,50 cm (no Missouri), passando a citações de Marlon Brando de ''O Poderoso Chefão'' (no Havaí), até descrever o réu como a personificação do diabo  — isto aconteceu em Ohio, onde uma corte do estado se referiu a imagem como um ''flagrante excesso dos limites do profissionalismo e do decoro'', mas que manteve a acusação assim mesmo.

Em 2003 o setor de treinamento da Associação Nacional dos Advogados Distritais — ''Escola Americana de Promotores'' como eles se autodenominam — publicou um livro de 290 páginas que ensina aos promotores como usar os recursos visuais. Em uma tentativa de rigor, o livro diz, ''descarte as cores delicadas''. Piadas nada sutis se destacam entre as lições; um dos gráficos mostra a evidência em uma fatia de pão: ''SE VOCÊ CORTÁ-LO, O ACUSADO SERÁ CULPADO''.  Em outro gráfico, que resume as evidências da promotoria em tijolos empilhados, lê-se: ''O TEXTO ESTÁ NA PAREDE". Os truques verbais — ''impactantes para os jurados'' — funcionam bem especialmente com slideshow, recomenda o livro, que dá o exemplo da palavra ''CULPADO'' (em inglês ''GUILTY") — neste caso um acrônimo reunindo expressões no idioma como ''deu um falso nome ao policial'', ''não explicou o que fazia ali'', ''eu não sei o que tem na mala'', ''deixou a cena do crime depressa'', ''a droga não é minha'' e ''você não confia nos agentes''.

O livro tem várias ilustrações criativas (e por vezes questionáveis) que fazem uso de um retrato prisional — colocando tudo centralizado, como se fosse um alvo — e dá muitas sugestões de visualização do conceito de ''razoabilidade da dúvida'', um conceito que tem posto promotores em apuros com as cortes de apelação inúmeras vezes. Um recurso citado lembra o game-show norte-americano  ''Roda da Fortuna'' (no Brasil, ''Roda a Roda Jequiti''), sugerindo slides que remontem a um painel da atração televisiva, deixando algumas palavras-chave retiradas da frase ''O Réu é Culpado'' e pedindo aos jurados que tentem resolver o jogo. 

Outro estilo de acusação pelo PowerPoint: slides que tentam explicar princípios legais. Dois meses atrás, uma corte de apelação em Nova Jersey lançou duas acusações de assalto em um caso onde o acusado dizia que tinha medo de ser linchado. No argumentação final, o promotor apresentou slides com ''trechos sobre a lei de legítima defesa que eram tão simplórias quanto enganosas'', a corte relatou. ''O mais grave, estas simplificações extremadas proporcionavam conteúdo de apelo ''fast-food'' , como aqueles ensinados nas apresentações de PowerPoint habilmente propostos.'' 

Talvez por coincidência, o estado onde os promotores tiverem mais problemas devido ao uso equivocado dos slides é Washington — terra da Microsoft, a fabricante do PowerPoint. Desde Agosto de 2012, as cortes de apelação reverteram pelo menos sete casos no estado. Algumas centradas em imagens sensacionalistas; em outras os promotores usaram slides que descaracterizavam além do tolerável o padrão da razoabilidade da dúvida ou infringiam o direito do réu de ficar em silêncio, e acordo com as regras da apelação.

Os juízes também criticaram os promotores da comarca de Pierce em casos onde as convicções se mantinham. No último ano, por exemplo, a Corte de apelações estadual manteve a condenação de assassinato para Odies Delandus Walker, apesar de acharem que os promotores usaram inadequadamente fotos modificadas que tinham sido aceitas como prova. Em dois slides, a promotoria usou linguagem chula em cima da foto prisional de Walker.

Este artigo foi redigido pelo Projeto Marshall, uma organização sem fins lucrativos que cobre o sistema da justiça criminal nos Estados Unidos. 
(Tradução: Marcos Vinícius Gomes)


Fonte
https://www.wired.com/2014/12/prosecutors-powerpoint-presentations/

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