25 de abr. de 2010

O sutiã e a sustentabilidade

Há alguns anos atrás a televisão brasileira tinha na publicidade veiculada nos intervalos de seus programas um teor de criatividade muito mais eficiente do que o atual. Poderia haver menos recursos tecnológicos para filmagens ou ainda poucos efeitos especiais disponíveis numa época pré-internet. Mas mesmo assim os comerciais dialogavam com o telespectador de modo único, fazendo parte até mesmo da cultura nacional. Inúmeros comerciais daqueles tempos com seus slogans e jingles ficaram na memória dos telespectadores-consumidores de produtos e serviços veiculados. 

A publicidade valia-se de slogans criativos e marcantes que podiam ser notados em frases como 'bonita camisa, Fernandinho', passando pelo anti-caspa 'parece mas não é', ou o bancário 'o tempo passa, o tempo voa'. Somado a isso, havia um repertório de personagens - sim, a publicidade teve em momentos passados uma característica narrativa - que perduraram por anos e ainda são citados por aí. Havia o detetive do aditivo automotivo que procurava a 'gangue' de malfeitores que 'danificavam o motor do carro', num ótimo exercício de personificação. Também havia o 'comercial dos mamíferos' com crianças representando filhotes de mamíferos - um clássico da publicidade nacional. E finalizando temos o internacionalmente premiado 'comercial do primeiro sutiã' onde a protagonista - também conhecida como 'a garota do primeiro sutiã' representava a fase de transição para a idade adulta de inúmeras adolescentes, numa peça publicitária que ficou marcada pelo teor poético e singelo, mesmo numa época já de costumes liberais.

Entretanto os tempos são outros, os comerciais não tem mais jingles criativos, personagens, ou slogans que adentrem no dia a dia do idioma. Agora existe uma estagnação na criatividade, onde poderíamos citar os bancos e suas mensagens de 'sustentabilidade' que de certa maneira são insustentáveis, bastando observar as filas enormes nas agências com um consequente aumento no consumo de ar condicionado, não condizendo com as frases 'nós nos importamos com o meio ambiente'. O mesmo vale para a indústria automobilística que, sem nenhum constrangimento toma o discurso ambientalista em suas propagandas - basta lançar um carro com o selo 'eco' e a empresa se tornará 'amiga da natureza'. Isso não citando as propagandas com animais silvestres correndo ao lado dos carros ou, mais insensato ainda, carros urbanos transitando em local improváveis, tais como regiões montanhosas, riachos, trilhas. 

Existem inúmeros outros aspectos que facilmente são percebidos num comparativo entre a propaganda de tempos não tão distantes com a contemporânea. Nem na parte musical há cuidado, não existem mais canções bem elaboradas, pega-se uma música (internacional principalmente) e em trinta segundos tenta-se vender produtos e serviços com pinceladas de discursos esquisitos. Não há mais personagens consistentes em peças publicitárias. Não há mais espaço para a 'garota do primeiro sutiã' e a descoberta do novo mundo feminino representado pelo acessório que representa como poucos a feminilidade. Há apenas a pseudo-sustentabilidade em serviços e produtos e uma feminilidade forçada, que não reflete o caráter da mulher de modo real. Não que eu despreze o pensamento ecológico, mas penso que havia um aspecto duradouro nas mensagens publicitárias de antes. Trocaram o sutiã pela sustentabilidade falsa. E entre os dois, fico com o primeiro.

Fontes:

11 de abr. de 2010

Massas, cavalos e Eliane Cantanhêde


João Batista de Oliveira Figueiredo (1918-1999), último presidente durante o regime militar implantado em Abril de 1964, disse certa vez que preferia cheiro de cavalo ao cheiro do povo. Esta frase foi tomada de assalto pela mídia e muito utilizada pelos adversários da 'redentora'. Não se sabe o contexto real em que foi dita - fala-se que foi uma resposta à pergunta de uma jornalista ao então presidente: 'O senhor gosta do cheiro do povo?'. Daí a resposta referindo-se aos cavalos. Figueiredo assumia publicamente esta imagem truculenta, anti-diplomática, obtusa. Certa vez, ele se recusou a comer cérebro de macacos num jantar em visita oficial à China -  depois  se justificou dizendo: "Eu já sou um macaco, porque iria comer aquilo?' Quando saiu da presidencia pediu para que esquecessem dele. Parece que foi atendido, mas suas gafes vez por outra encontram ressonâncias em discursos, geralmente ligados setores da  direita brasileira, esta direita que está cada vez mais reacionária.

Eliane Cantanhêde, colunista da Folha de S. Paulo retratou bem esta ressonância vista periodicamente, principalmente na imprensa. As gafes 'figueiredianas' puderam ser relembradas na cobertura do lançamento da candidatura de José Serra à Presidência da República feita pela jornalista. Num vídeo do site Folha Online , Cantanhêde dá uma aula de jornalismo-tietagem, numa cobertura onde não esconde o entusiasmo por estar cobrindo o importante evento. Sem dúvida, foi importante. Entretanto a colunista da Folha deixa mostrar algo além do entusiasmo profissional-pessoal até certo ponto justificável, dependendo da ótica do observador. Este 'algo' desabonador é o ressurgimento do discurso de preconceito de classe, estratificador, recorrente em discursos daqueles que são contrários ao bem estar coletivo por meio de políticas estatais que beneficiem a todos, indistintamente. Um velho discurso 'casa grande e senzala' aliviado por nuances cantadas em verso e prosa neste país do futuro liderado por uma elite vergonhosa (mas não envergonhada por seus atos).

Ao reportar sobre a festa do lançamento da candidatura de Serra (que impressionou pela falta de organização,  pela confusão e pelo desbragamento nos discursos incomum entre tucanos), Cantanhêde citou o comentário de um 'assessor veterano' do PSDB que afirmou que o partido estaria virando um partido de massas, mas de 'massas cheirosas'. Completando, a colunista disse que os ônibus que trouxeram os partidários eram 'novinhos'. A colunista da Folha reproduziu a expressão - 'massas cheirosas' - como que saboreando as palavras, tal qual  o faria uma dondoca num evento do Jockey Clube de São Paulo ao passar a receita de um bolo para as colegas de bonança. Mas Cantanhêde não é dondoca, ela está mais para porta-voz de setores da direita que tem encontrado em veículos de comunicação, principalmente nos de São Paulo e Rio de Janeiro, um canal de divulgação de seus ideais antiquados, ultrapassados, que evocam tempos do atraso social e econômico, onde apenas poucos tinham acesso a serviços básicos assegurados por lei para todos.

Nas palavras entusiasmadas de Cantanhêde temos o ressussitar da mentalidade tacanha e opressora vinda desde os tempos das capitanias hereditárias, passando pelos senhores de engenho, chegando até os coronéis eletrônicos gerindo seus currais eleitorais.  Em suas palavras bucéfalas poderemos encontrar o suporte para os argumentos que fazem do Brasil um dos mais injustos em distribuição de renda no mundo.  No discurso 'figueirediano' do assessor tucano que   Cantanhêde reproduziu com prazer  há a personificação jocosa do desprezo e da insensibilidade elitista. Há a elite cheirosa, há os cavalos do jóquei (que devem ser tratados melhor do que o povo) há o povo - supostamente mal cheiroso. Cantanhêde faria melhor se apenas trocasse receitas de bolo no Jockey Clube. Mas evidente ela não faria o bolo, isso é trabalho de povo, das empregadas que viajam duas horas para chegar ao trabalho como sardinhas em lata nos ônibus velhos - ou como cavalos indo para o Jockey Clube.   

Foi dado o início para a corrida  presidencial. Isso é apenas uma pequena amostra do que vem por aí. Que possamos votar não como quem faz uma aposta, mas como quem faz algo consciente e que mudará - ou não - nosso futuro como país.


Fonte:
http://www1.folha.uol.com.br/folha/videocasts/ult10038u719002.shtml

4 de abr. de 2010

Eduard Khil, ou 'o homem mais feliz do mundo'

O título pode sugerir alguém que tenha ganho algum prêmio de loteria, ou então que tenha achado a sorte grande nos negócios ou que tenha conseguido algo mais pessoal como a conquista (ou a reconquista) da pessoa amada. Entretanto nenhuma destas possibilidades descrevem o que está por detrás das palavras do lead. Na verdade Eduard Khil é um cantor russo aposentado de 75 anos, ex-barítono e viajou por vários países em turnês de apresentações. Num período de cerceamento de liberdades ele desenvolveu sua arte na medida do possível, possível este determinado pela mente burocrática e opressora dos líderes da antiga União Soviética.

Eduard Khil  está num vídeo do site Youtube . Ali está o clipe onde ele canta uma música   nos anos setenta para a TV estatal soviética. 'Eu  estou tão feliz por finalmente voltar para casa', é uma música original americana que retrata a vida  de um caubói. A letra não teria  nada de excepcional e diz: 'Eu estou montando meu cavalo mustang nas pradarias, enquanto minha adorada Maria está a milhas de distância costurando minhas meias'. E nesta letra singela que o viés burocrático  da ex-União Soviética se mostrou latente - a ponto de censurarem a letra da música por ser  uma 'canção de faroeste' (lembremos que Estados Unidos e União Soviética foram forças opostas na 'Guerra Fria', movimento armamentista pós Segunda Guerra Mundial e que acabou apenas com o desmanche do bloco soviético liderado pela Rússia; daí a justificativa da censura, que na cabeça dos burocratas russos seria uma 'exaltação' à cultura americana, ...)

Restou então para Khil gravar o clipe da música apenas 'cantarolando' sem referir-se à letra então censurada. Talvez em épocas recentes, principalmente no 'mundo ocidental' liderado pelos Estados Unidos o clipe passaria despercebido. Afinal, não havia esta certa pasteurização da música pop,  e não havia divas que parecem saídas do forno no esquema Lady Gaga ou Beyoncé que ditassem tendências na indústria fonográfica. O que chama a atenção é a originalidade da canção, a técnica, o fato de um cantor erudito tentar expressar algo através de uma canção censurada apenas cantarolando, tentando emocionar o espectador.

E isso Eduard Khil parece que conseguiu vários anos depois de gravar o clipe. O elegante barítono virou hit na internet. Antes de saber da fama inesperada e tardia, seu neto chegou em casa cantarolando a música - também conhecida como 'Trololo' - e, questionado pelo avô barítono, o garoto disse que estavam todos cantando sua música da net, fazendo versões, paródias. Era o começo do 'estrelato tardio' de Khil. Os acessos de seu 'hit cantarolado' atingiram  a casa dos milhões em pouco tempo. Versões da canção em estilos diversos como 'dance-music' assim como a venda de camisetas com a estampa do cantor russo podem ser adquiridas pela internet.

O cantor russo disse em entrevista ao canal de notícias Russia Today que passou a adorar a internet, pois ela possibilita um 'encontro de gerações'. Khil parece estar certo, e este episódio traz inúmeras reflexões sobre nossos conceitos de liberdade individual, liberdade de expressão, divulgação de conhecimento, ideologias políticas, censura, manipulação midiática, enfim, um apanhado de temas que muitas vezes tem suas essências pouco analizadas por nós. Seria um bom momento de pensarmos sobre estes temas. Mas, é claro, ouvindo 'Trololo', ou a canção do 'homem mais feliz do mundo'.

Fontes:

Cartão Verde para Armando Nogueira


Armando Nogueira (1927-2010) atravessou duas épocas distintas do jornalismo: viveu numa época dourada, representada em parte significativa pela imprensa carioca. Trabalhou  com jornalistas - escritores de renome como Nelson Rodrigues,  Paulo Mendes Campos , Fernando Sabino,  Rubem Braga em veículos históricos numa convivência harmônica, quando o jornalismo permitia uma certo flertar com  a literatura  e este texto jornalístico/literário dava o tom  nos textos árduos das notícias do cotidiano. O Brasil ainda acreditava ser o país do futuro, tínhamos uma visão romântica de nossa sociedade, escondíamos - ou fingímos não ver as mazelas históricas vindas desde os séculos  de colonialismo e escravismo patrocinadas por  uma sociedade estratificada, hierarquizada, opressora e  corporativista. A capital do país, o Rio de Janeiro ditava tendências, modas, era o centro cultural e político nacional. A Bossa Nova veio compensar a aura que foi perdida devido à mudança da capital para Brassília e por certo tempo a Cidade Maravilhosa pode sustentar o seu  ego e sua economia.

Mas vieram os tempos difíceis pós-64 e tudo mudou. A liberdade foi  reduzida e em alguns casos a censura fez esta palavra 'liberdade' - hoje tão banalizada - em algo precioso, fosse ela liberdade de expressão, de pensamento, cultural, política. Mais de vinte anos se seguiram de retenção de liberdades que nos custam problemas até hoje, o país se desenvolveu apenas para parte da população, excluindo milhões do progresso humano, social e econômico.

Armando Nogueira seguiu sua carreira jornalística  na televisão, notadamente na Rede Globo onde criou o 'Jornal Nacional'. Levou para o jornalismo da emissora  sua tendência poética que ia ao encontro da ideologia de Roberto Marinho e seu jeito de fazer jornalismo 'morno', sem querer expor diretamente ao leitor - e ao espectador - o que havia por detrás das entrelinhas editoriais. Neste ambiente, Nogueira pode desenvolver e profissionalizar o ofício de jornalista que foi essencial para o fortalecimento institucional da emissora de Marinho, tanto por afinidade como por dever de ofício.

Nesta atmosfera, Nogueira liderou o 'JN' com seu jornalismo perfumaria, manipulado pela censura dos militares apoiados pelo dono da Globo. O jornalismo da emissora foi um laboratório de intervenções onde o interesse pessoal superou o papel de um veículo de comunicação - o de informar, formar opiniões, conceitos, de ser isento, apartidário, de ser democrático e mostrar a realidade mesmo sabendo o custo que isso irá causar. Foram vários episódios ligados aos veículos de Marinho (Rede Globo e Jornal O Globo), que os acusam de manipulação de informações visando interesses imediatos, até mesquinhos, numa mistura nefasta entre o público e o privado. Lembremos do caso da manipulação de dados das pesquisas de boca de urna nas eleições de 1982 quando Leonel Brizola (inimigo ferrenho de Marinho) venceu, além da manipulação na edição do debate da eleição à presidência em 1989 onde Lula foi prejudicado em favor de Fernando Collor - preferido das Organizações Globo.

Este episódio foi o fim da era ' Armando Nogueira' no comando do jornalismo da emissora de Marinho. Nogueira criticou a edição imposta  do debate Collor x Lula exibida no JN o que lhe custou o cargo. Mas mesmo sem Armando e sua poesia jornalístca, a emissora carioca continuou sua sina de maquiar a realidade em favor de 'x' ou 'y' num coronelismo eletrônico que somente encontrou paralelo nas empresas de comunicação do norte e nordeste brasileiros - lugares com seu 'jornalismo cabresto' favorecendo os donos destas empresas - geralmente políticos a serviços de oligarquias familiares.

É difícil afirmar se Armando Nogueira foi responsável pelo status que a emissora de televisão que mais cresceu no regime militar atingiu. É certo afirmar que a Globo e seu jornalismo parcial seria a Globo de hoje com ou sem Nogueira, mas o que favoreceu sua permanência há tanto tempo como diretor de jornalismo foi a já citada empatia patrão - empregado, emissora - jornalista. Hoje, após sua morte, circulam por aí textos de ex-subordinados fazendo uma leitura piedosa de Nogueira, que mesmo reverendicando  o jornalista, o acusam de ter sido conivente com o regime. E estes que o criticam, não eram de certa maneira coniventes também? Algum deles foram jornalistas por anos a fio da Rede Globo e atualmente sob o manto protetor desta nova Vênus midiática chamada Edir Macedo, destilam uma independência  que não tiveram coragem de fazer em tempos de vacas magras.

Nogueira após sair da 'Vênus Platinada' seguiu outros caminhos, entre eles na TV Cultura de São Paulo onde participou do 'Cartão Verde', programa de debates esportivos de domingo à noite, onde o enfoque era dar à mesa redonda um ar de elegância e refinamento, destoando dos tradicionais formatos pautados pela paixão exacerbada e por partidarismos de jornalistas. Ele numa entrevista explicou que no futebol havia o cartão amarelo para advertir e o cartão vermelho para punir o atleta com sua saída. Daí o nome da mesa redonda 'Cartão Verde' onde o atleta, o esporte seriam brindados com este cartão inexistente no futebol, um cartão que mostraria o lado bom, poético, singelo da pratica esportiva mais popular do mundo. Bem adequado à característica jornalística de Nogueira que foi literária, poética, simbólica, com  metáforas, paradoxos, enfim um apuro esquecido nos textos e imagens contemporâneas que chegam até nós. Nogueira foi o último representante da safra romântica de jornalistas que poderia ser classificada como 'Bossa Nova'.  E pegando de empréstimo esta tendência, aqui vai um 'Cartão Verde' para Armando Nogueira, o jornalista das metáforas.