15 de abr. de 2011

Tragédia em Realengo

Alberto Magalhães


Talvez não seja muito difícil fazer uma leitura do evento ocorrido na escola em Realengo, no Rio. Essa é uma tentativa de se adentrar nos meandros da mente do assassino Wellington e descobrir as suas razões. Ninguém faria um ato bárbaro desses se não tivesse movido por fundamentos incontestáveis, sólidos. Para iniciar devemos observar que mais eventos como aquele não acontecem no mundo apenas por falta de oportunidade para o pretenso executor promover o atentado como, por exemplo, a impossibilidade do pretendente juntar os seus “algozes” no mesmo lugar, ou tê-los juntos no mesmo tempo e espaço, como aconteceu nas escolas que sofreram esses ataques. Certamente Wellington se achou no direito de “punir” os seus “inimigos” que o haviam tratado com desnecessária insensibilidade, desprezo e desrespeito por anos. Atos socialmente impunes. Ele não considerava o seu projeto o de um louco ou de um monstro, mas de um “justiceiro”. Quem lê a bíblia e torna-se um fundamentalista, como ele muito bem demonstra, prega que Deus pune os “ímpios” com a morte e alguns se acham no direito de auxiliá-lo nessa tarefa, como se fossem um anjo da morte. O seu antecipado pedido de perdão ao Divino, em carta, não foi exatamente por causa das mortes que iria causar, mas da sua própria vida que iria deliberadamente encerrar naquele ato. De alguma forma esse tipo de pessoa considera-se “superior” aos seus desafetos, acha-se espiritualmente “iluminado”, por considerar-se incompreendido, injustiçado, perseguido e, portanto, especialmente acolhido pelo Ente divino. Na sua caminhada à escola Tasso da Silveira ele pode ter se sentido um herói, um justiceiro dos fracos, oprimidos e humilhados, dos incompreendidos, rejeitados, diferentes. A preferência dele em executar as meninas pode ter se dado porque elas “podiam” e “deviam” ter-lhe sido solidárias e favoráveis, por serem mulheres, portanto sempre mais sensíveis e compreensivas. Ele certamente considerava-se um cidadão honrado, virtuoso, digno... E a cultura atualmente assimilada pela juventude feminina é a da sensualidade pura, da qualidade física e a de recepcionar, preferencialmente, o descolado, o transgressor, o despojado de valores éticos e morais e que interage com todos os segmentos pragmáticos. Tudo o que ele não era. E só elas, ao menos uma, poderia o ter reabilitado frente a eles. Se alguém teve a vontade para isso, não teve coragem suficiente de se indispor contra a horda adversa. A sua solidão teria se tornado interiormente devastadora. No seu gesto extremo ele tentava sair da insignificância que lhe submeteram para a notoriedade dramática, correspondente ao seu dilema: ser mais um anônimo fracassado ou ganhar relevante projeção exatamente por meio daqueles que o jogaram para o fundo do poço? Ele era muito desajustado e a sua tentativa de sublimação veio num ato que não era só de ascensão. Mas, um misto de superação, vingança, justiça, catarse. O seu encontro com a libertação seria o encontro com a morte. Talvez, se pudesse, a de todos.


Alberto Magalhães é funcionário público em Aracaju, SE e autor do blog

19 de fev. de 2011

A viagem infindável de Gulliver

Um dos lançamentos deste verão nos cinemas é o filme “As viagens de Gulliver”, baseado no livro homônimo do irlandês Jonathan Swift (1667-1745). O filme é uma releitura de alguns trechos do livro com uma linguagem moderna e mais atrativa para o público jovem e adolescente. O que parece normal, visto que a obra sempre foi associada a um mundo - ou mundos - fantásticos, surreais, numa narrativa surpreendente do início ao fim. George Orwell, atuor de A revolução dos bichos e 1984 disse ser "impossível se cansar dele"; Orwell afirmou ainda: "Se eu tivesse que fazer uma lista com os seis livros que deveriam ser preservados quando todos os demais fossem destruídos, com certeza colocaria As Viagens de Gulliver nela". Com este aval do grande escritor inglês, o livro de Swift faz por merecer seu prestígio e suas idéias que continuam atuais.

Nele o protagonista viajante Lemuel Gulliver narra suas aventuras pelo mundo (detalhe para o nome Gulliver que vem de gullible que em inglês significa crédulo e talvez a credulidade seja um ingrediente indispensável para ter um contato  mais profundo com outros povos e suas culturas). O texto é cheio de descrições referentes aos países por onde Gulliver passa, não apenas externas, mas com deduções do caráter dos habitantes que o narrador faz questão de expor. Em cada parada, há um povo com suas peculiaridades, tanto de caráter quanto em seu aspecto físico, indo desde gigantes, criaturas em forma humana minúsculas, passando pelos habitantes da ilha flutuante até chegar à terra dos cavalos falantes. E o mais impressionante é que todo esse universo de estranheza que parece algo distante, uma realidade de outra dimensão, não é nada mais nada menos do que o reflexo da nossa própria realidade humana, inclusive a contemporânea.

O pastor Jonathan Swift nasceu num período conturbado da história da Inglaterra que estendia seus domínios sobre a Irlanda. A preocupação primordial dele era contra a injustiça, a impiedade. Ele queria criticar as instituições e referenciais da elite de então. Teve relações com o poder e conhecia todas as artimanhas que circundavam os donos do mundo com suas hipocrisias, suas pompas, sua burocracia e indiferença para com o cidadão. Parece bastante pretensão para um livro que sempre é citado como um 'livro para crianças', devido à linguagem fluente, a descrição minuciosa, além do humor que As Viagens de Gulliver traz. 

Como recurso para descrever as injustiças de seu tempo, as incongruência do que é dito nos gabinetes e o que é praticado de verdade na vida pública, a cegueira da sociedade, Swift usou uma estratégia - escrever um livro com formato de livro de viagens (esses eram moda então). Cada país onde o capitão Gulliver para não é senão o próprio país de Swift e suas complexidades; para nomear seus lugares imaginários, Swift usou nomes codificados para dificultar a identificação com situações, lugares e pessoas de seu tempo, o que lhe causaria problemas se o fizesse de forma direta. Liliput (a terra dos habitantes minúsculos) é um referencial à pequenez de caráter de homens opressores e demagogos. Brobdingnag, é o lugar onde ocorre o inverso de Liliput - ali ele é o minúsculo, sendo manipulado pelos habitantes do lugar como se fosse um fantoche, carregado de um lado para outro dentro de uma caixa. 

Prosseguindo sua viagem, Gulliver chega à Laputa, a ilha flutuante dos pensadores, músicos e cientistas, onde só é possível chegar através de uma corda pendurada. Talvez Laputa se refira à Inglaterra, que dominava a Irlanda de Swift, causando-lhe empobrecimento pela cobrança de impostos - daí Laputa seria literalmente 'uma prostituta que arranca dinheiro alheio'. Em Laputa, os sábios são acompanhados por auxiliares que utilizam uma bexiga com pedrinhas dentro amarrada numa vara, que é chacoalhada toda vez que alguém se dirige a um destes sábios. Uma crítica impiedosa aos cientistas de então - e porque não a certos contemporâneos também  - com sua falta de visão ampla, com seu orgulho e desejo de prestígio,  com seu desdém para com os ramos de conhecimento que sejam diferentes dos seus. 

Em sua fase final, Gulliver relata a viagem à terra dos houyhnhnms (a pronúncia provável seria whinnims, imitando o relinchar eqüino), os cavalos filósofos. Gulliver fica admirado com sua inteligência, contrastando com a ignorância dos yahoos, seres descritos como semelhantes a homens, mas como corpo cheios de pelos e comportamento animalesco. Alguns autores associam os houyhnhnms a filósofos estóicos (o estoicismo prega a serenidade, a razão sobrepujando os sofrimentos do mundo); essa conclusão vem por causa da aversão de Swift ao estoicismo, sendo uma forma de ridicularizá-lo associando seus adeptos a  quadrúpedes inteligentes em seu livro. 

Todos esses lugares fantásticos, criados por Swift,  de habitantes impossíveis em situações surreais eram senão os próprios humanos e suas atitudes inconseqüentes e incoerentes de seu próprio país. Para realizar sua obra, o autor levou  a imaginação para outros lugares, num exercício de reflexão sobre seu tempo que perdurou com o passar dos anos. Isso porque continuamos nos mesmos erros do tempo de Swift e apesar dos avanços incontáveis nos diversos ramos do conhecimento humano, parece que regredimos em alguns aspectos; já em outras áreas nunca avançamos satisfatoriamente. Conhecer o mundo de Gulliver e seus personagens é viajar dentro de nós mesmos, num mundo que parece alheio, mas que é reconhecido no menor gesto ou pensamento de cada um de seus personagens.

Fontes:
As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift, Nova Cultural, São Paulo, 1996

30 de jan. de 2011

A minha 'cultura' me basta

O impasse em relação ao encerramento das atividades do Cine Belas Artes na Rua da Consolação, em São Paulo mostra o quanto desimportante é a cultura para o brasileiro. Não me refiro ao desprezo cultural ligado à população mais pobre - que na visão simplista dos cultos somente aprecia a 'cultura de massa'. Me refiro sim ao ideal de cultura como algo diletante, um estigma pessoal que ecoa por onde passa, uma cultura sem referencial social, pouco efetiva na vida cotidiana.

O Belas Artes, que apresenta filmes do circuito alternativo  é freqüentado por um público específico - o que aprecia filmes 'de arte', com orçamento baixo, também chamado de 'cinema de autor'. Uma pergunta que poderia ser feita é: onde estava esse público que aprecia os filmes deste e de outros cinemas alternativos quando estes começaram a dar prejuízo? (supostamente pela baixa receita de caixa, apesar de alguns afirmarem que 'a arte não é mercadoria', como se o artista vivesse de brisa). Onde estavam aqueles que fizeram passeata com nariz de palhaço contra o fechamento do cinema?

A cultura, essa coisa tão indescritível e tão abstrata nessa terra de cegos sempre foi um lustro imensurável para quem a tem e algo irrelevante no alheio, ou naquele que a busca de forma aprimorada, visando novos horizontes e novos referenciais. Quem tem cultura no Brasil sempre arrogou a si um direito inalienável, algo como 'hereditário' que, de  tão fatídico como o fator genético, possibilita certos conceitos como 'herdei a cultura de minha família...' ou 'cresci rodeado de livros, pois meu avô tinha uma biblioteca magnífica', entre outras frases de demonstram o pretenso 'DNA cultural' de quem as diz.

Imagino que os que protestam contra o fechamento do cinema são os mesmos que protestam contra o sucateamento da TV Cultura. Dirão alguns: 'É uma emissora indispensável para a difusão da cultura e educação, etc'. Uma afirmativa pouco sincera, pois esses que defendem a emissora, alimentam os canais a cabo dos grandes grupos. Alguns replicarão: 'Sim, mas é uma questão de escolha, vejo os dois, além do mais tenho uma cultura nata  e me preocupo com a população mais carente que não tem acesso à arte e à cultura'. É o argumento do 'minha cultura' ou 'meu pirão' primeiro. Fazem isso também em relação ao Belas.

Imagino ainda que os que protestam contra o fechamento do Belas Artes não estejam preocupados com o cinema em si e a impossibilidade de não mais assistirem aos filmes preferidos, mas sim estariam preocupados com a perda do status que ocorreria com o fechamento da sala. Afinal cult que é cult não basta em si mesmo, tem que aparecer e mostrar refinamento. Mas é preciso palco - no cinema de arte um bom lugar é a fila, para mostrar conhecimentos cinematográficos, incluindo semiótica, análise do discurso e simbolos psicanalíticos encontrados no último filme visto. Outro possível palco é a livraria, de preferência as da moda como a Fnac, onde é comum ver aquelas criaturas destilando cultura pelos corredores - geralmente um homem acompanhado de uma ou duas mulheres - que sempre tem um comentário sobre algum autor, apontando-o na prateleira e dizendo: "Eu vi  fulano quando estive em Paris e o cumprimentei!".

Como ex-freqüentador assíduo do Belas Artes e hoje já não tão assíduo assim,  lamento pelo desfecho de sua história, mas também lamento pela cegueira dos revoltados que, graças à sua  falta de noção de que cultura é mais do que apenas refinamento egocêntrico e brilho opaco da falta de originalidade,  carregam a própria derrota, produzida por um mecanismo fracassado de um sistema perverso que  foi subestimado por eles, por conveniência ou por indiferença.


Fonte
http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,em-sp-cine-belas-artes-pode-ganhar-sobrevida,666140,0.htm

2 de jan. de 2011

Um romântico vitorioso

"Sou homem". Com essa afirmativa o técnico do atual campeão brasileiro Fluminense, Muricy Ramalho,  define a si mesmo. Não é exatamente uma frase de auto-afirmação, mas uma resposta (de certo modo equivocada) para aqueles que classificam seu jeito de atuação como 'romântico' por dar prioridade ao fator humano, mesmo sob condições adversas e de falta de estrutura adequada, como foi o caso do time carioca. "A estrutura é importante, ajuda muito, mas são os homens é que fazem a diferença. Se o técnico não for bom, não adianta", disse ao conquistar o campeonato nacional. 

O aclamado técnico ao dizer que é 'homem' para fugir do rótulo de romântico, o faz talvez por desconhecimento do verdadeiro significado da palavra. Esse desconhecimento é geral entre nós. Somos influenciados pela mídia, cinema, televisão, além da indústria fonográfica que nos mostra o romantismo associado apenas a algo ligado aos sentimentos mais profundos de amor a uma pessoa, um sentimento que vence barreiras e idéias intransponíveis. Essa é uma idéia apenas parcial do ideal romântico, mas que tem sido  considerado como principal e único do que venha a ser o romantismo.

O romantismo surgiu no início do século 19 como resposta a nova sociedade que surgia na Europa, industrial, urbana e que impunha novas diretrizes que não satisfaziam plenamente a todos, pois  essa sociedade era por vezes injusta, desumana e renegava valores importantes para a humanidade até então. Daí nasce o movimento que teve sua maior importância na literatura - inclusive o romance  (livro com histórias em forma narrativa) surge nessa época. As principais características do romantismo eram a exaltação do 'eu', o  liberalismo, o sentimentalismo, o apreço pela natureza e um certo anarquismo. O Brasil teve importantes escritores românticos como Castro Alves, José de Alencar, Casimiro de Abreu entre outros. Seguindo o ideal romântico escreviam principalmente em verso e prosa os anseios sobre a pessoa amada de forma desbragada e pura, além de esboçarem reações contra o sistema opressor - no Brasil  o foco foi a escravidão, onde Castro Alves clamava por liberdade aos escravos em seus poemas.

A sociedade seguiu seu rumo e o movimento romântico murchou como 'uma rosa entre os seios da doce amada adormecida em sonhos belos'. Somos ainda em parte produto daquela época, conquistas sociais, científicas e tecnológicas nos distanciam daqueles tempos, mas o ideal romântico ainda resiste. Assim como nos primórdios do romantismo, vez por outra surge alguém que - ao lado de românticos mais convencionais que exaltam o amor -  deseja mudanças a seu modo, vencendo forças contrárias, idéias estabelecidas, instituições caducas e opressoras, usando para atingir suas metas ideais muitas vezes subestimados, por não fazerem parte das 'regras do jogo' em questão. Na sociedade contemporânea temos um complicado sistema de interesses intimamente ligados entre si e é mais conveniente ficarmos resignados e seguirmos um padrão mais racional de conduta. Essa é uma explicação para a força e o encantamento causados pelo romântico que exaltado contesta valores,  expondo os seus ideais como um novo combustível para a mudança almejada.  

Muricy Ramalho pode negar seu romantismo, por não ser sentimental e ser excessivamente franco em suas posições no lucrativo mundo do futebol, mas ele é um destes exaltados que fascinam a muitos que provavelmente não teriam o mesmo fôlego para difundir seus ideais mais fervorosos. O técnico tetra-campeão brasileiro, com três títulos pelo São Paulo e um pelo Fluminense pode ser classificado como um romântico 'vitorioso' (isso porque geralmente os românticos não são valorizados prioritariamente por metas e sim pelas suas trajetórias, como Pelé que é pouco lembrado pelos títulos,  mas exaltado pela carreira brilhante). E para atingir sua mais recente meta, Muricy deu um passo atrás, recusando o cargo de técnico da seleção brasileira, num gesto que poderia ser classificado como insensato por um profissional carreirista. Entretanto, ele sabia de seus objetivos e com técnica, trabalho e a boa intuição traçou sua história e a de seu time. O despojamento característico de Muricy em entrevistas coletivas que causa espanto nos mais pragmáticos, foi esquecido com a sua coroação como técnico campeão de um  time conhecido há tempos atrás apenas por lutar para não ser rebaixado para a segunda divisão. Um feito que somente uma mente romântica e exaltada poderia imaginar e atingir. Esse  homem - romântico - sabe o que faz.