Desconsiderando o fato de ter sido explorado em alguns momentos de modo sensacionalista pela mídia e demagógico por políticos locais, o episódio envolvendo os 33 mineiros que ficaram 70 dias soterrados na mina de Copíapó no Chile trouxe uma simbologia que há tempos não se percebe no mundo contemporâneo - a simbologia épica.
A narrativa épica (do grego epos = palavra, história) foi utilizada em textos que exaltavam as grandezas e coragem de um povo, como por exemplo na Ilíada e na Odisséia de Homero, que se referem aos gregos. Já no século 16 da nossa era Luis Vaz de Camões compôs Os Lusíadas onde mostra a bravura do povo português cruzando mares e descobrindo novas terras. Porém com a modernidade o épico perdeu a razão de existir por estar associado a um grupo, um povo como todo sem distinção. Atualmente, após termos uma nova visão política e social que é respaldada nas liberdades individuais, o épico perdeu força ficando apenas na recordação dos tempos antigos.
Num tempo onde as individualidades são exaltadas para que se assegurem os direitos de todos indistintamente, há distorções sobre essa visão humanista tão importante. Uma distorção é na propagação do individualismo como algo bom para um grupo, uma sociedade, um país. Culturalmente o individualismo pode ser notado em certos filmes, romances, na dramaturgia televisiva, na música. Até mesmo na política há determinados grupos que apregoam o individualismo de modo indireto, como por exemplo no pensamento neoliberal, onde o estado deve existir em função do indivíduo e não da sociedade.
Daí esse caos contemporâneo que notamos em todos os segmentos da sociedade. A individualidade transformada em individualismo faz com que percamos cada vez mais a noção de que em toda sociedade a força motriz que a impulsiona é o bem comum. Não há individualidade que resista quando as leis são desrespeitadas em benefício de um ou outro; ou quando um ecossistema é poluído, quando os direitos do cidadão são negligenciados, quando a corrupção é tida como normal num país onde os indivíduos não tem acesso a muitos serviços negados pelo governo cada vez mais adepto do 'estado individualista (ou neoliberal).
A simbologia dos mineiros chilenos (que poderiam ser brasileiros ou americanos) sendo resgatados da mina, num parto de um novo começo é válida quando percebemos que não somos importantes individualmente quando não pensamos no outro, no grupo, na sociedade. Ali provavelmente não haveria lugar para individualismos, o mais importante era que cada um cooperasse para que o bem comum fosse atingido. Cada qual com sua história de vida, suas metas, sua visão de mundo, mas com suas prioridades voltadas para o bem comum. Os colegas na superfície esforçando-se dia e noite para que a operação de resgate saísse perfeita. As famílias torcendo pelos seus entes e pelos colegas. A população acompanhando o episódio épico contemporâneo com heróis de verdade e coragem real, muitas vezes mal remunerados e sem reconhecimento pelo trabalho que beneficia a sociedade. Na individualidade dos mineiros houve o senso de coletividade para que todos atingissem o objetivo de retornar à superfície e à vida. Foi uma histórica épica que nos faz refletir sobre o ditado que explica nosso individualismo: 'se cada um fizer a sua parte, o mundo será melhor'. O certo dever ser: 'se cada um fizer a sua parte pensando em todos, o mundo será melhor'. E para isso, não é preciso ser um herói dos textos ou dos filmes épicos; basta pensar e agir de modo solidário.