por Slavoj Zizek
A suposta 'militância' liberal e sua cultura de cancelamento tem pouco a ver com despertar para o que está acontecendo no mundo e tentar mudá-lo - é somente muito barulho por nada, enquanto o status quo é cuidadosamente preservado.
A
reprovação liberal-conservadora para a assim chamada cultura do
cancelamento é que é muito radical: dizem que seus agentes querem
destruir todas as estátuas, limpar nossos museus, reescrever nosso
passado inteiro...em resumo, querem nos afastar de nossa memória
coletiva e purificar nossa linguagem cotidiana num linguajar vazio,
censurado e sem vida. Entretanto, acho que Ben Burgis está certo em seu
apelo de que os militantes da cultura do cancelamento são ''Comediantes que cancelam enquanto o mundo pega fogo'':
longe de ser 'radical', suas imposições de novas proibições e regras
são um dos casos específicos de pseudo-atividade, de como se assegurar
que nada realmente mudará pela simulação em ato tresloucado. Não por
acaso novas formas de capital, em particular os capitalistas hi-tech
anti-Trump (Google, Apple, Facebook), fervorosamente apoiem as lutas
antirracistas e pró-feminismo - o 'capitalismo militante' é nossa
realidade. Ninguém muda as coisas de verdade prescervendo medidas cuja
metas são estabelecer um equilíbrio superficial sem atacar as causas
implícitas deste desiquilíbrio.
(...)Existem algumas raras vozes de autêntica oposição na esquerda a estes caminhos em direção à falsa justiça - além de Burgis, podemos citar Angela Nagle e Katherine Angel. O único problema que tenho com o livro de Katherine chamado 'Tomorrow Sex Will Be Good Again' ('O Sexo Amanhã Será Novamente Bom') é o seu título, o qual parece implicar que o sexo uma vez sendo bom (não antagonístico) será também nas outras vezes. Eu raramente leio um livro em que concordo com suas premissas básicas tão fortemente - uma vez que essa premissa é formulada de modo conciso no comentário de capa do livro que cito desavergonhadamente:
''A
mulher está numa enrascada: no modo do consentimento e empoderamento,
elas devem mostrar seus desejos claramente e de modo confiante, ainda
que os pesquisadores da sexualidade sugiram que o desejo feminino é
sempre revelado lentamente e que os homens sejam astutos para afirmar
que eles sabem o que a mulher - e seus corpos - querem. Enquando isso, a
violência sexual é grande. Como podem as mulheres, nesse contexto,
saber com certeza o que elas querem e porque esperamos isso delas?
Katherine Angel desafia nossas certezas em relação ao desejo das
mulheres; por que, questiona, deveriamos esperar delas o conhecimento de
seus desejos e como podemos levar a violência sexual a sério quando não
saber o que elas querem é a chave seja do erotismo e da sua
personalidade?''
O
trecho acima é crucial: alguma teoria feminista deveria levar em
consideração o não-conhecimento como um ponto-chave da sexualidade e
colocar sua oposição à violência em um reacionamento sexual não nos
termos usuais do 'sim é sim', mas por evocar esse mesmo
não-conhecimento. Isto porque o jargão que afirma que as mulheres 'devem
dizer seus desejos claramente e com confiança' não é somente uma
imposição violenta na sexualidade mas literalmente uma dessexualização,
uma promoção do 'sexo sem sexo'. Daí o motivo do feminismo, em alguns
casos, impor precisamente o mesmo 'shaming and silencing'
(constrangimento e silenciamento) da sexualidade das mulheres que busca
combater. O que está por detrás da violência física (ou psicológica)
direta das investidas sexuais masculinas não desejadas é a presunção
condescendente de que ele sabe o que a mulher 'confusa'' não sabe (e é
dessa forma legitimizado a agir baseado nesse conhecimento). Poderia ser
uma justificativa que um homem é violento mesmo se ele trata uma mulher
de forma respeitosa - uma vez que é feito sobre essa presunção de saber
mais sobre os desejos dela do que ela própria soubesse.
Isto
não implica que o desejo das mulhres seja em algum sentido deficiente,
comparado àquele dos homens (que supostamente sabem o que querem) ; a
lição da psicanálise é que há sempre um vão que separa o que queremos
do que desejamos. Talvez aconteça que eu não somente deseje algo mas que
o queira sem pedir de modo explícito, escondendo o que me impulsiona -
procurar diretamente arruinaria a satisfação de conquistá-lo. E
inversamente, eu poderia querer algo, sonhar com isto, mas não desejá-lo
a fim de conseguí-lo - a minha completa consistencia da subjetividade
repousa nesse não-ter: conseguí-lo de modo direto levaria ao colapso de
minha subjetividade. Deveríamos ter sempre em mente que uma das mais
brutais formas de violência ocorre quando alguma coisa que secretamente
desejamos ou fantasiamos (mas que não estamos preparados para fazer na
vida real) é a imposto a nós por fatores externos.
A única forma de sexo que se encaixa perfeitamente no critério do politicamente correto é o contrato sado-masoquista.
Os
partidários de esquerda do politicamente correto sempre respondem aos
críticos que os enfoques nos 'excessos'' da militância, no aspecto
proibitivo do cancelamento e da cultura militante, ignoram uma ameaça
muito mais grave de censura. Mais precisamente no Reino Unido, nós temos
a polícia infiltrada nos sindicatos, regulação do que é publicado na
mídia e aparece na TV, crianças menores de famílias muçulmanas
interrogadas por ligações terroristas e até acontecimentos únicos como o
não solucionado encarceramento ilegal de Julian Assange...Uma vez que
eu concorde que a censura é muito pior do que os ''pecados' da cultura
do cancelamento, penso que isso possibilita o argumento final contra a
cultura militante e regulações politicamente corretas: por que a
esquerda politicamente correta enfoca nos detalhes regulatórios do como
nós falamos, etc em vez de trazer à tona as coisas muito mais
importantes citadas acima? Não é de se estranhar que Assange também
tenha sido atacado por algumas feministas politicamente corretas (não
só) da Suécia que não o apoiaram porque levaram a sério as acusações
sobre sua má conduta sexual (a qual foi desmentida depois por
autoridades suecas). Uma infração sem provas das regras do politicamente
correto relevou o fato de ser uma vítima de terrorismo de estado...
Entretanto, quando a postura militante toca num aspecto realmente importante da reprodução da ideologia hegemônica, a reação do establishment muda
do desdém pelo oponente em seus excessos para uma tentativa apavorada
de repressão violenta por meios legais. Sempre lemos na mídia
reclamações sobre o excesso de crítica de gênero e estudos raciais que
tentam reavaliar a narrativa hegemônica do passado americano. Mas
estamos agora no meio de uma contra-ofensiva reacionária em ação para
reestabelecer um mito de embranquecimento americano. Novas leis foram
propostas em no mínimo 15 estados dos Estados Unidos que visam banir o
ensino da 'teorica racial crítica', o chamado 'Projeto 1619 The New York
Times' (projeto editorial do jornal novaiorquino com ênfase em artigos
abordando a escravidão e suas implicações na sociedade norte-americana)
e, eufemisticamente, os 'conceitos divisionistas'.
As teorias proibidas são realmente divisionistas? Sim, mas somente no sentido restrito em que se opõem (dividem-se entre si) do mito hegemônico oficial que é já divisionista em si mesmo, pois exclui alguns grupos ou posturas, colocando-os em posição subordinada. Além disso, está claro que para os partidários do mito oficial, a verdade não importa aqui, mas somente a 'estabilidade' dos mitos fundadores - estes partidários, não aqueles chancelados por eles como 'relativistas históricos', estão efetivamente praticando a perspectiva da 'pós-verdade' já que gostam de evocar 'fatos alternativos', além de excluirem mitos fundadores alternativos. Ao criticar a cultura politicamente correta do cancelamento, devemos dessa maneira sempre ter em mente que compartilhamos seus objetivos (pelo feminismo, contra o racismo, etc.) e que criticamos sua ineficiência na busca por tais metas. Com os defensores dos mitos fundadores, a história é diferente: seus objetivos são inaceitáveis e nós esperamos pelo seu fracasso na busca para atingí-los.
(Tradução: Marcos V. Gomes)