30 de jan. de 2011

A minha 'cultura' me basta

O impasse em relação ao encerramento das atividades do Cine Belas Artes na Rua da Consolação, em São Paulo mostra o quanto desimportante é a cultura para o brasileiro. Não me refiro ao desprezo cultural ligado à população mais pobre - que na visão simplista dos cultos somente aprecia a 'cultura de massa'. Me refiro sim ao ideal de cultura como algo diletante, um estigma pessoal que ecoa por onde passa, uma cultura sem referencial social, pouco efetiva na vida cotidiana.

O Belas Artes, que apresenta filmes do circuito alternativo  é freqüentado por um público específico - o que aprecia filmes 'de arte', com orçamento baixo, também chamado de 'cinema de autor'. Uma pergunta que poderia ser feita é: onde estava esse público que aprecia os filmes deste e de outros cinemas alternativos quando estes começaram a dar prejuízo? (supostamente pela baixa receita de caixa, apesar de alguns afirmarem que 'a arte não é mercadoria', como se o artista vivesse de brisa). Onde estavam aqueles que fizeram passeata com nariz de palhaço contra o fechamento do cinema?

A cultura, essa coisa tão indescritível e tão abstrata nessa terra de cegos sempre foi um lustro imensurável para quem a tem e algo irrelevante no alheio, ou naquele que a busca de forma aprimorada, visando novos horizontes e novos referenciais. Quem tem cultura no Brasil sempre arrogou a si um direito inalienável, algo como 'hereditário' que, de  tão fatídico como o fator genético, possibilita certos conceitos como 'herdei a cultura de minha família...' ou 'cresci rodeado de livros, pois meu avô tinha uma biblioteca magnífica', entre outras frases de demonstram o pretenso 'DNA cultural' de quem as diz.

Imagino que os que protestam contra o fechamento do cinema são os mesmos que protestam contra o sucateamento da TV Cultura. Dirão alguns: 'É uma emissora indispensável para a difusão da cultura e educação, etc'. Uma afirmativa pouco sincera, pois esses que defendem a emissora, alimentam os canais a cabo dos grandes grupos. Alguns replicarão: 'Sim, mas é uma questão de escolha, vejo os dois, além do mais tenho uma cultura nata  e me preocupo com a população mais carente que não tem acesso à arte e à cultura'. É o argumento do 'minha cultura' ou 'meu pirão' primeiro. Fazem isso também em relação ao Belas.

Imagino ainda que os que protestam contra o fechamento do Belas Artes não estejam preocupados com o cinema em si e a impossibilidade de não mais assistirem aos filmes preferidos, mas sim estariam preocupados com a perda do status que ocorreria com o fechamento da sala. Afinal cult que é cult não basta em si mesmo, tem que aparecer e mostrar refinamento. Mas é preciso palco - no cinema de arte um bom lugar é a fila, para mostrar conhecimentos cinematográficos, incluindo semiótica, análise do discurso e simbolos psicanalíticos encontrados no último filme visto. Outro possível palco é a livraria, de preferência as da moda como a Fnac, onde é comum ver aquelas criaturas destilando cultura pelos corredores - geralmente um homem acompanhado de uma ou duas mulheres - que sempre tem um comentário sobre algum autor, apontando-o na prateleira e dizendo: "Eu vi  fulano quando estive em Paris e o cumprimentei!".

Como ex-freqüentador assíduo do Belas Artes e hoje já não tão assíduo assim,  lamento pelo desfecho de sua história, mas também lamento pela cegueira dos revoltados que, graças à sua  falta de noção de que cultura é mais do que apenas refinamento egocêntrico e brilho opaco da falta de originalidade,  carregam a própria derrota, produzida por um mecanismo fracassado de um sistema perverso que  foi subestimado por eles, por conveniência ou por indiferença.


Fonte
http://www.estadao.com.br/noticias/arteelazer,em-sp-cine-belas-artes-pode-ganhar-sobrevida,666140,0.htm

4 comentários:

  1. Anônimo1/3/11 13:10

    Parabéns pela lucidez e concisão do texto!

    Eu também 'ando' para esses boçais intelectualóides de meia página.

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  2. Coveirinho,

    Obrigado pela visita e pelo comentário - qualificado, ressalto.


    Abs.

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  3. Anônimo2/3/11 10:17

    Marcos,

    fiz um paralelo entre o que você aborda neste texto e o que vem acontecendo na cidade onde vivo, a bucólica e colonial Campinas/SP.

    Aqui, vários espaços culturais alternativos e econômicos sucumbiram ao "hype" das novas mecas da cultura e fecharam suas portas, abandonados à própria sorte que estavam.

    Aquele público bacana, com seus óculos e cortes de cabelo da moda, que tanto adora subir num palanque para defender a "cool-tura" não exatamente ligada a indústria, foi o primeiro que embarcou em seus Citröen rumo aos Kinoplex da vida.

    Isso ocorre da caso pensado. Ir a um pequeno cinema de poucas poltronas e com preço de entrada simbólico não "gira" a economia.

    Os caras querem o povão no shopping, sem pensar muito mas comprando TUDO. Sobretudo, querem esses senhores consumidores cuja vaidade intelectual adquirida em bancos de universidades de ponta não permite paletós comprados em lojas de departamento.

    Veja, sou uma pessoa de pensamento comum, "pop", mas é de virar o estômago ver esse pessoal com todo aquele ranço alternativo/intelectual debatendo "Lixo Extraordinário" enquanto saboreia um capuccino na Starbucks.

    A questão é profunda.

    Bom, minha senha saiu. Deixa eu tomar meu café! Hshshshshs.

    Um abraço.

    Coveirinho Pop usa computadores Xing-Ling, telefones da geração anterior e possuia um Uno 92 que fora apreendido por falta de documentação.

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  4. Pois é Coveirinho,

    Já ouvi falar muito de Campinas...conheci alguns espécimes unicampianos que fariam o mais fanático uspiano ficar no chinelo tamanha sua aura fosforescente...

    Eu acredito que a cultura está se transformando em algo como uma fetichização - veja o caso de se pagar R$ 120,00 num livro de domínio público como "Moby Dick"...é de chorar.

    Evidente que em algumas áreas a fetichização havia, como em telas onde os magnatas pagavam a dívida externa de muitos países africanos apenas num quadro festejado. Mais aqui é o 'produto cultural blasé' que se junta ao 'blasé cultural' numa mistura que está resultando nisso que estamos debatendo.

    E dá-lhe Los Hermanos (sim, aqueles que não queriam gravar o que as pessoas queriam ouvir, mas que renegaram descaradamente Ana Julia); e tome Móveis Coloniais de Acaju e seu besteirol que não chega nem aos pés do Língua de Trapo e congêneres; e viva Mallu Magalhães (quem?) e seu sub-cult pop-emo....

    Não sei se você já assistiu, mas se não, recomendo o filme "Anne Hall" de Woody Allen, onde há várias situações em que os acadêmicos, intelectuais, vanguardistas de última hora, charlatões culturais são criticados. Existe uma cena onde ele (Alvin) está na fila do cinema com Anne, sua namorada e na mesma fila há um professor de Cultura tagarelando sobre tudo. Tem um momento que ele não aguenta e reclama com o 'intelectual' e este todo arrogante diz que tem uma 'cadeira em Colúmbia'. Então o personagem de Allen pega Marshall Mc Luhan pelo braço (autor que escrevia sobre comunicação) para argumentar com o acadêmico e este diz ter lido seus livros - e Mc Luhan replica dizendo que se ele leu seus livros pelo visto não os havia entendido nada. É uma cena épica, vale a pena ver...

    Bem...deixa eu tomar o meu café...coado aqui mesmo em casa no coador de papel...

    Abraço.

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