18 de set. de 2011

Nem o FBI salva Scarlett

O episódio da divulgação de fotos colhidas por hackers dos arquivos digitais de Scarlett Johansson e a consequente investigação do FBI para a localização dos culpados, é um bom indicador de que seja o momento propício para uma revisão dos conceitos de virtualidade e realidade na transmissão de dados digitais na internet e suas possíveis consequências. As fotos de Scarlett nua circularam por um dia na rede. No dia posterior, seu advogado ameaçou os sites que estavam divulgando as fotos da cliente tiradas em casa, mas o estrago já tinha atingido um tamanho diretamente proporcional à fama da atriz americana. 

Certamente cópias foram feitas, e nessa era de divulgação instantânea de dados - para o bem e para o mal - é impossível medir a dimensão exata dos efeitos causados por um acontecimento como esse a longo prazo. Provavelmente Scarlett tenha algumas dificuldades inicias para conseguir dissociar sua imagem de uma leitura que a associe à vulgaridade, algo que talvez seja imaginado por algum patrocinador ou contratante de seus préstimos artísticos-estéticos. Basta apenas convencer os donos do mundo que pagam seus graúdos cachês, que ela é uma atriz competente e que as fotos de caráter íntimo foram roubadas por pessoas inescrupulosas. E tudo ficará bem, pois Scarlett nasceu para ser Scarlett e isso já é um bom e suficiente álibi.

Assim como Scarlett Johansson teve sua intimidade mostrada em rede mundial, inúmeras outras pessoas não famosas nem prestigiadas tem seus momentos íntimos divulgados pelos mais variados motivos. Algumas são vítimas de verdadeiros criminosos que desejam a ridicularização, afetando a auto-estima das pessoas divulgando dados digitais, sejam fotos ou vídeos,  para constrangê-las. Isso é muito comum em rompimentos traumáticos de relacionamentos, onde uma das partes tenta compensar suas frustrações emocionais expondo a outra parte à vexação pública, publicando materiais que não deveriam sair do âmbito doméstico. Já em outro lado, estão as pessoas que tem seus momentos íntimos mostrados na internet graças a um certo 'consentimento inconsequente', típico de alguém que tem atitudes direcionadas prioritariamente por referenciais de inconsequência - em especial o adolescente e o jovem.

Se no primeiro caso temos a possibilidade de apontarmos mais diretamente o responsável pela divulgação indevida da intimidade de outra pessoa,  para que sejam aplicadas as sanções necessárias pelo ato, no segundo temos todo um repertório simbólico que nos faz confusos, e dentro desse repertório, as mais variadas explicações e divagações sobre de quem seria a responsabilidade pelo constrangimento da divulgação de imagens inapropriadas, mesmo que sejam feitas 'de comum acordo' (geralmente relações sexuais gravadas em câmeras de celular em lugares inimagináveis, tendo sido registrados até mesmo casos de filmagens feitas em escolas). E geralmente - tratando-se do Brasil - não acontecerá provavelmente nada em relação a isso, os adolescentes em sua inconsequência continuarão desorientados, carregando para sempre a associação de suas imagens e de suas condutas com os vídeos inapropriados postados na net, e consequentemente nem eles, nem seus pais e responsáveis serão responsabilizados pelo ato anti-ético e difamatório.

Podemos já aqui, com essa explanação, rejeitar de forma veemente o aspecto 'virtual', geralmente associado à internet. Essa argumento de falsa virtualização é comum em discursos onde se tenta analisar os impactos do uso dos computadores e da internet na vida social das pessoas. Não é levado em conta a simbologia dos dados - fotos ou filmes neste caso - que circulam de forma rápida e são reproduzidos/reprocessados numa velocidade inimaginável. Assim como as idéias se interligam de forma virtual no cérebro e somente terão efeito prático através de ações, os dados da internet também só terão efeito real após o precessamento das informações dos usuários, que a seu critério, reprocessarão as informações para si e para outros de seu grupo.

Sob essa perspectiva o uso inconsequente da internet pelos jovens que postam filmes inadequados, por exemplo, pode ter até uma leitura filosófica. O jovem atual, alimentado por ideais de niilismo, de descrença no amanhã, do uso da inconsequência como ferramenta de libertação da impossibilidade de lidar com a realidade, acredita que o ato impensado difundido pelos bites no mundo além fronteiras da internet, será uma ato apenas. Mal orientado pelo adulto, o jovem acredita na virtualidade pura da rede e que seu gesto tresloucado apenas durará o ato de sua inconsequência, numa negação sequencial, num gesto de negação da própria história, o que é um grande engano. A foto, ou o filme inadequado protagonizado por um casal pode ter inúmeras leituras por vários usuários, sendo que os protagonistas iniciais perdem seus direitos sobre a própria imagem e talvez temporariamente sobre seus destinos. Se não fosse assim, Scarlett não ficaria preocupada com a divulgação não autorizada de suas fotos nua, visto que a número de leituras dessas fotos é enormemente variado. E em um mundo onde as imagens são importantes na construção da identidade e de referencias de credibilidade, não quis ela se arriscar, apesar de nesse caso, já ter sido o material amplamente divulgado pelo fato de ela ser atriz de grande sucesso.

Partindo desse princípio, poderíamos adotar argumentos de caráter educativo e que transmitisse ao jovem uma alternativa para o pensamento inconsequente. Se tal inconsequência faz parte da juventude (atualmente bem acentuada devido à omissão dos pais, educação deficiente e falta de perspectivas de vida) ela pode ser revertida com sua força para uma construção de uma imagem mais positiva sobre o próprio jovem. Isso baseado na constatação de que o jovem busca uma imagem, quer construir uma nova perspectiva sobre si que resultará na leitura que os outros farão dele. Ao perceber que a divulgação inconsequente de imagens inapropriadas através da internet é algo que não possibilitará de modo algum que ele reconstrua a própria imagem após o ato tresloucado, ele pensará muito antes de cometer tal ato, pois não deseja que o domínio sobre sua imagem pertença a outras pessoas. E perceberá que o seu ato de agora trará consequências no futuro, para si e para seu grupo social.

Alertar sobre os riscos reais do mundo 'virtual', que são causados pelas inconsequências do mau uso da rede,  é mais do que urgente na educação para o uso ético da internet. Assim como na vida real, onde todos temos deveres e responsabilidades de cidadão, o 'mundo virtual' também tem suas representações éticas e morais, sendo de escolha do participante acatá-las ou não. Se não quiser acatar as representações, isso é um risco que não pode ser compartilhado, é intransferível. A prudência evita o desassossego. Se não houver prudência, não haverá FBI com toda a sua capacitação que poderá dar cobertura para investigar todos os casos envolvendo crimes cibernéticos com seus perigos do mundo digital. Não existe, na rede mundial, sistema cem por cento seguro - hackers tem feito verdadeiras proezas, invadindo sistemas de órgãos acima de qualquer suspeita em quesito de segurança como governos e agências de inteligência como a CIA. Tal qual no mundo não virtual, o cuidado com a própria segurança dos dados pessoais na internet é uma grande arma de prevenção contra criminosos e pessoas mal intencionadas. 


4 de set. de 2011

Menina-mulher, mulher-menina

Thylane Blondeau, modelo de apenas dez anos, foi destaque da revista Vogue de janeiro de 2011. Filha de um jogador de futebol e de uma também modelo, teve fotos divulgadas na revista de moda, o que não seria relevante se não fosse por um pequeno detalhe - as fotos possuem alta carga de sensualidade, indo além de uma suposta representação da vida adulta feita com frequência por crianças em ensaios fotográficos, o que pode ser algo saudável e até lúdico, pois faz parte do processo de desenvolvimento infantil a imitação dos modelos adultos e as situações por eles vividas. As fotos estão disponíveis no portal IG.

O comentário da professora de psicologia e pesquisadora do Grupo de Estudos de Educação e Relações de Gênero da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Jane Felipe de Souza reflete bem em seu raciocínio o caso específico que pode, a partir daí, ser utilizado de modo genérico na sociedade contemporânea: "A expressão da sexualidade parece ser uma obrigação para as mulheres hoje em dia, e, consequentemente, é também para as meninas. A idealização de beleza e juventude afeta também as crianças, que não querem mais ser tão crianças assim". Ela prossegue: "Quando se coloca o corpo infantil como corpo desejável, o que estamos querendo com isso? Nesse sentido, estamos nos tornando uma sociedade pedófila. Estamos construindo um olhar pedófilo em cima das crianças, principalmente das meninas."

A sociedade atual é pautada por um certo utilitarismo social. Laços afetivos, por exemplo, são construídos muitas vezes com o direcionamento de uma visão que almeja agregar valores do senso comum, e muito pouco de uma tentativa de se estabelecer a longo prazo os alicerces necessários para a verdadeira coesão destes laços. Isso se reflete em relações matrimoniais, sociais, familiares. No caso específico da criação de filhos, muitos pais também tem essa visão para com eles. Certa vez, vi numa reportagem televisiva, uma mãe justificando que não pretendia ter mais do que um filho, devido à alta competitividade do mercado de trabalho - a mãe já vislumbrava o quanto gastaria na formação do filho, levando em conta apenas o aspecto financeiro na criação da criança. O que certamente é importante, mas não o único fator representativo das necessidades essenciais da infância bem desenvolvida e bem protegida pelos pais ou responsáveis.

No caso específico da modelo-mirim, foge-se de um tradicional roteiro de precocidades que existe em situações onde a criança deve desenvolver responsabilidades e potencialidades que a façam parecer um adulto, tudo isso em circunstâncias que não prejudiquem seu desenvolvimento, por exemplo no caso de crianças que tem atividades direcionadas desde cedo conciliando vida escolar e brincadeiras com seus afazeres de 'gente grande' - alguns 'artistas mirins' podem ser referência aqui. Não é este o caso. As fotos de Thylane Blondeau vão além disso, elas parecem simbolizar um ideal, um nicho de mercado que sobrepuja até mesmo a simples representação de uma criança vestindo roupas de uma grife famosa - elas são, em essência, a última fronteira de um ideal de desconstrução da simbologia da infância e de sua importância para a sociedade. Na verdade, a pequena modelo não representa uma parcela de mercado, ela é a própria mercadoria, a mercadoria que disponibiliza uma nova perspectiva social de resultados obscuros.

A psicóloga norte-americana Diane Levin, autora do livro "A Infância Perdida" explica o fenômeno: "Crianças mais novas estão agindo e fazendo coisas de crianças mais velhas. Parece que o tempo está correndo cada vez mais rápido para elas". A autora complementa: "As meninas querem se parecer com adultas e as adultas, cada vez mais, querem se parecer com meninas". Aqui algo que merece maior destaque: a falta de paradigmas para uma fase e outra da vida, a quebra da linha que separa essas duas fases - a vida infantil da vida adulta, que se misturam como algo intercambiável, uma espécie de permuta social que foi constituída sem nenhuma grande objeção das características das partes, que não tinham como ser dimensionadas no 'outro lado'. 
 
De um lado temos a criança que, cada vez mais indefesa, é alvo de representações nefastas que vão contra sua estrutura biológica e psicológica e que visam alimentar interesses que vão desde o simples mercado, passando pela visão política e social (em regimes de exceção como os comunistas, as crianças são 'meninas dos olhos' de ditadores, que veem nelas o material revolucionário essencial para seus projetos). No outro extremo temos a mulher que, direcionada pelo ideal da sensualidade irrestrita como algo de grande potencial e capital social, enxerga em si um ser em formação perpétua - não como alguém em uma necessária e louvável transformação contínua, mas alguém que apenas almeja o eterno bônus por seus atos e por sua existência em si mesma, sem que autorize uma visualização mais detalhada de seus atributos e competências de mulher adulta, sendo que poderá ser chamado de opressor quem o fizer. Em nossa sociedade, a crítica à postura infantilizada da mulher contemporânea em certas circunstâncias é tida como um ultraje desmerecido para com alguém que se legitima em ser substancialmente hedonista, que se vê como merecedora de inúmeros diretos e disponibilidades possíveis (há tempos atrás, isso seria prerrogativa de meninas mimadas).

Uma prova empírica desse raciocínio, que vê a dificuldade de separação de etapas distintas no processo de desenvolvimento humano desde a infância, é o próprio episódio envolvendo a pequena modelo francesa. Sua mãe, Veronika Loubry, ao ver a repercussão das fotos na internet disse: "Thylane não sabe sobre nada disso e eu quero protegê-la. Ela é tão nova! Por isso, resolvemos fechar esta página". Esse discurso é cheio de dubiedades e mostra a falta de maturidade da mãe da menina. Será que ela não conseguiu abstrair a possibilidade de que as fotos da filha em um ensaio sensual pudessem causar polêmica, além de uma superexposição por causa da temática escolhida? Ou melhor, porque permitiu que a filha fizesse o material? Ela não viu as fotos? Não percebeu a simbologia erotizante contida nelas, que poderia causar traumas em seu desenvolvimento como criança? Não viu que, psicologicamente poderia - ou poderá - ter disfunções em seu desenvolvimento que acarretarão problemas em sua fase adulta? Tantos questionamentos, tantos indicadores de que uma mulher-menina no papel de mãe está cuidando de uma menina-mulher como filha, ambas desnorteadas - a mãe arrogando a si o direito de surpreender-se perante sua própria inconsequência e a filha desprotegida pela mãe e pelo pai, numa perspectiva que poderá trazer-lhe sérios problema na vida adulta. Eles são o reflexo da anarquia social que tem atingido as famílias em vários países, e a sociedade parece adormecida sobre esse problema que ainda não teve sua dimensão analisada e medida a contento.


Fontes:

http://delas.ig.com.br/filhos/supermodelo+mirim+levanta+discussao+sobre+exposicao+infantil/n1597161332841.html
http://i0.ig.com/bancodeimagens/0i/kw/91/0ikw911osakxtsa4u9y5x4tky.jpg
http://i0.ig.com/bancodeimagens/bc/qk/we/bcqkweqy881ibvfzufhpks2tn.jpg

5 de jun. de 2011

A marcha das cabeças vadias

Aconteceu no dia 04/06/2011 na Av. Paulista, São Paulo, a primeira 'Marcha das Vadias'. O evento que pretendia reunir 2500 pessoas, reuniu apenas cerca de 300 no sábado frio da capital. A idéia original da marcha ocorreu após um seminário numa universidade de Toronto, Canadá, onde um policial disse que estupros seriam evitados se as alunas não se vestissem como vadias - sluts em inglês. Então as alunas, revoltadas com a afirmação do policial, organizaram um protesto e saíram vestindo roupas sumárias e gritando palavras de ordem contra a opressão masculina. Foram as pioneiras na marcha que já ocorreu em 15 lugares diferentes até agora, desde Janeiro de 2011, data da primeira marcha.

Nas ruas de São Paulo, as manifestantes - algumas - desfilaram de roupas íntimas,  segurando cartazes e ecoando slogans da causa feminista. As fotos das participantes do evento são interessantes. Uma delas, com óculos de aros pretos e cabelos aparados, se destacava pelo modelo com um recurso estranho de sustentação que tentava segurar os 'quilinhos' a mais. Porém mais estranho era o fato de ela estar segurando um cartaz em inglês (talvez um pouco confusa e acreditando estar no fuso horário de Londres), onde se lia: "I'm a human, not a sandwich!" ("Sou um ser humano, não um sanduíche!"). Fazendo parte do recheio do protesto, uma outra segurava um cartaz - por coincidência rosa - onde, talvez num possível exercício de afirmação existencial, estava escrito: "Não sou puta". 

Uma das organizadoras do desolado evento, Solange Del Ré, 30, expressa sua linha de pensamento sobre o assunto:"É um problema corriqueiro que toda mulher enfrenta. Se você vai comprar um cigarro no bar, pode ser intimidada, como se estivesse provocando essa reação só por ser mulher", afirma. Ela prossegue: "A gente sabe que tem mulheres sendo espancadas no Brasil. Mulheres que são estupradas por causa da roupa que estão usando".  Ou seja, ela não dissocia uma investida elegante ou uma cantada elogiosa do homem da grosseria ou da rudeza encontrada em algumas atitudes masculinas ao abordar uma mulher. Também  na visão de Solange, a probabilidade de estupro ocorrer num país islâmico como o Irã seria nula, pois lá existe um código rigoroso de conduta para a vestimenta feminina, que é representada por véus e vestidos longos.

O movimento feminista é reconhecido pelas incoerências de discursos, de atitudes, pela imprecisão de sua análise da realidade econômico-social e do eterno discurso da independência feminina utilizando-se não da originalidade, mas de uma reprodução inconsequente de comportamentos equivocados de certos homens. A professora Silvia Koller do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio Grande do Sul endossa essa perspectiva afirmando:"Uma massa dessas na rua expõe esses pontos para a sociedade: se os homens podem andar de qualquer jeito, por que as mulheres não podem? Nem por isso os homens são agredidos, xingados, estuprados". Há aqui uma tentativa de impor a igualdade através da construção social, como se homens e mulheres pudessem ser ''moldados'' excetuando as características físico-biológicas em suas vidas. Certamente Silvia Koller não exigiria equidade em campos da vida cidadã feminina, como por exemplo na obrigatoriedade do serviço militar para mulheres (que existem em alguns países como Israel), assim como defesa de casamentos de mulheres com potencial econômico/social um pouco acima da média do homem. O discurso feminista certamente quer mostrar idoneidade, porém ela é escassa em vários setores da vida humana, mesmo em épocas recentes onde uma presumível igualdade de direitos não tem sido representada pelo empreendimento feminino em áreas afins com resultados visíveis.

A incoerência ronda grandes nomes da ideologia feminista. Simone de Beauvoir, um das principais deidades do feminismo, saía de bicicleta pela França ocupada durante a Segunda Guerra atrás de namorados, livrando-se de obrigações para com seu país na resistência francesa ao nazismo. Foi partidária, junto com o marido Jean-Paul Sartre, da 'promiscuidade consciente', onde de comum acordo tinham práticas pouco ortodoxas em um relacionamento conjugal. Seguindo esse acordo, Beauvoir tinha livre trânsito em laços fora do matrimônio, sendo talvez uma das precursoras a assumir esse ideal de vida amorosa. Assim, Beauvoir assinava a carta de alforria, graças ao seu prestígio como líder feminista, a todas as mulheres que veem nela um ideal de mulher independente e à frente e seu tempo. Entretanto essa parece ser uma alforria falsa, pois essas mesmas mulheres alforriadas querem, seguindo os ensinamentos de Simone de Beauvoir, se dissociar do referencial de vulgaridade que ronda o ideário coletivo em relação a certas mulheres no mundo atual: a 'mulher objeto' que atingiu esse patamar graças à liberação sexual, mas que é relatada como produto do machismo que se aproveita dessa 'mulher objeto' de todas as formas. A mulher independente que mostra sua sensualidade na mídia, graças ao engajamento libertário feminista ("Meu corpo, minhas regras" dizia um dos cartazes da marcha) e que alimenta os anseios do homem machista. Num sistema onde o pensamento parece um acessório apenas para a divulgação de ideais incoerentes, não existe a possibilidade de se destacar o criador da criatura - todos estão no mesmo patamar. O feminismo e o machismo parecem fazer parte de um sistema mercadológico de 'oferta e procura'.

Uma desafeta de  Simone de Beauvoir,  Antoinette Fouque, afirmou que a frase "Ninguém nasce mulher, mas se torna mulher" foi o pronunciamento mais imbecil do século. Fouque também é crítica do modelo de 'mulher sem filhos' e aponta uma certa frigidez mental da mulher de Sartre. Talvez até nisso as feministas de lingerie da Paulista tenham algo similar a Beauvoir. A frouxidão de idéias e de metas é algo visível na marcha. E frouxidão mental não é recomendável, pois daí para a 'mente vadia' é um passo. Não, as moças da Paulista não são vadias em seus trajes, mais podem ser em suas idéias. Que seja lembrado o ditado "mente vazia é oficina do demônio". Oficina das idéias esdrúxulas guiando cabeças vadias.

Uma história íntima da humanidade, Teodore Zeldin, Best Bolso,RJ, 2008

A cantiga de roda mais bonita da cidade

O hit mais comentado e acessado da internet essa semana foi o clipe da música 'Oração' da banda curitibana "A banda mais bonita da cidade". O grande número de acessos fez com que a banda underground se tornasse conhecida nacionalmente, inclusive com entrevistas para TV e sites de notícias. Formada há dois anos, o quinteto disponibilizou 'Oração' no site You Tube e em quinze dias já foram registrados mais de 4milhões e 500 mil visualizações.

O guitarrista da banda Rodrigo Lemos resumiu, em entrevista, o evento:"Postamos o clipe apenas nos perfis do Facebook das pessoas que participaram da gravação. Foi muito rápido: saímos para almoçar e quando voltamos observamos que os amigos dos amigos estavam compartilhando a música. Tudo aconteceu de uma maneira inesperada”, reconhece o curitibano".

O clipe foi gravado em 'plano sequência' utilização de uma só tomada, ou seja, o vídeo não tem cortes. Foi gravado em uma casa no interior do Paraná, onde participam no vídeo-clipe, além da banda, alguns amigos dos integrantes. Foram feitas oito gravações segundo  o cinegrafista do clipe André Chesini, sendo que a motrada no Youtube é a terceira tentativa."A gente tinha o zelo de fazer o filme, bonitinho e tal. Mas estávamos totalmente descompromissados", diz Rodrigo, num das várias tentativas de passar uma idéia de 'eventualidade' para a divulgação do clipe.

Apesar de tudo indicar o contrário, isso aparenta ser uma grande estratégia de marketing. Qualquer pessoa com mínimos conhecimentos da linguagem cinematográfica sabe que houve um cuidado com fotografia, áudio e gravação, além da escolha criteriosa para uma música que foge um pouco da linguagem proposta pelo grupo. 'A banda mais bonita da cidade' segue à risca a cartilha indie  (abreviatura de independente em inglês, movimento musical surgido nos anos 1980), que tem uma metodologia de distribuição 'não comercial', com selos terceirizados ou próprios para lançarem seus trabalhos. Mas a independência não para por aí. Há toda uma ideologia, uma certa liturgia no trabalho dos indies que, ao tentarem a originalidade, tiram essa intenção do processo, virando algo como 'o mais do mesmo'. No indie, a pretensão é ir contra a corrente, adotando um visual despojado. As letras tentam suprimir o despojamento visual com uma pretensiosa (e por vezes irritante) tentativa de criar uma atmosfera beletrista, onde metáforas, hipérboles (exageros) e ecos sonoros são prioridade e nem sempre garantia de boa música. A escola indie começou nos anos 1980 e tem nas bandas 'The Strokes', 'Belle & Sebastian', 'Beirut' além da brasileira 'Los Hermanos' seus maiores expoentes.

Música para grudar no ouvido - Algo que faz com que suspeitemos do ar descompromissado dos discursos dos integrantes, alegando a não-fama  como motivador do clipe, pode ser notado na letra da música. Ali, há o registro de uma estrutura semelhante às cantigas de roda, com versos de sete sílabas (também conhecido como redondilha maior). Temos em algumas cantigas de roda essa estrutura, como em 'Ciranda Cirandinha'. As sílabas acentuadas estão em caixa alta:

"Ci|ran|da|ci|ran|di|nha
Va|mos|to|dos|ci|ran|DAR
Va|mos|dar|a|mei(a)|VOL|ta
Vol|ta(e)|mei|a|va|mos|DAR.’"

Chico Buarque de Holanda em sua 'A banda' também usa redondilha menor:

"Es|ta|va(à)|to|a|na|VI|da
O|meu |a|mor|me|cha|MOU
Pra|ver|a|ban|da|pas|SAR
Can|tan|do|coi|sas|de(a)|MOR"

Valendo-se desse recurso facilitador de assimilação da letra, 'A banda mais bonita da cidade' vem com igual proposta:

"Meu|a|mor
Es|ta(é)| a(úl)|ti|ma(o)|ra|ÇÃO
Pra|sal|var|seu|co|ra|ÇÃO
Co|ra|ção|não|é|tão|SIM|ples
Quan|to pen|sa
Ne|le|ca|be(o)|que|não|CA|be
Na|des|pen|sa
Ca|be(o)|meu|a|mor
Ca|bem|três|vi|das|in|TEI|ras
Ca|be|u|ma|pen|te(a)|DEI|ra
Ca|be|nós|dois..."

Efeito "Anna Júlia" - Com essa singela música e durante longos seis minutos 'A banda' tenta fazer com que as letras obtusas e pretensiosas de outras músicas como 'Canção pra não voltar' sejam esquecidas por um momento. E mostra em rimas repetidas à exaustão que pode chegar ao grande público, mesmo que negue ou que venha renegar isso futuramente. Um episódio interessante foi o caso dos 'Los Hermanos' que despontou com a conhecida "Anna Júlia", que foi renegada como algo 'inferior' quando os barbudos cariocas já tinham alcançado seus objetivos mais imediatos. Somente um exercício de 'previsão de riscos' em carreiras musicais poderia dar um idéia sobre no que isso irá resultar. Mas ao seguir uma cartilha já consagrada, apesar de arrogarem a si a originalidade mais criativa, 'A banda mais bonita da cidade' pode até conseguir certa notoriedade pois está fazendo a lição de casa corretamente.