2 de jan. de 2011

Um romântico vitorioso

"Sou homem". Com essa afirmativa o técnico do atual campeão brasileiro Fluminense, Muricy Ramalho,  define a si mesmo. Não é exatamente uma frase de auto-afirmação, mas uma resposta (de certo modo equivocada) para aqueles que classificam seu jeito de atuação como 'romântico' por dar prioridade ao fator humano, mesmo sob condições adversas e de falta de estrutura adequada, como foi o caso do time carioca. "A estrutura é importante, ajuda muito, mas são os homens é que fazem a diferença. Se o técnico não for bom, não adianta", disse ao conquistar o campeonato nacional. 

O aclamado técnico ao dizer que é 'homem' para fugir do rótulo de romântico, o faz talvez por desconhecimento do verdadeiro significado da palavra. Esse desconhecimento é geral entre nós. Somos influenciados pela mídia, cinema, televisão, além da indústria fonográfica que nos mostra o romantismo associado apenas a algo ligado aos sentimentos mais profundos de amor a uma pessoa, um sentimento que vence barreiras e idéias intransponíveis. Essa é uma idéia apenas parcial do ideal romântico, mas que tem sido  considerado como principal e único do que venha a ser o romantismo.

O romantismo surgiu no início do século 19 como resposta a nova sociedade que surgia na Europa, industrial, urbana e que impunha novas diretrizes que não satisfaziam plenamente a todos, pois  essa sociedade era por vezes injusta, desumana e renegava valores importantes para a humanidade até então. Daí nasce o movimento que teve sua maior importância na literatura - inclusive o romance  (livro com histórias em forma narrativa) surge nessa época. As principais características do romantismo eram a exaltação do 'eu', o  liberalismo, o sentimentalismo, o apreço pela natureza e um certo anarquismo. O Brasil teve importantes escritores românticos como Castro Alves, José de Alencar, Casimiro de Abreu entre outros. Seguindo o ideal romântico escreviam principalmente em verso e prosa os anseios sobre a pessoa amada de forma desbragada e pura, além de esboçarem reações contra o sistema opressor - no Brasil  o foco foi a escravidão, onde Castro Alves clamava por liberdade aos escravos em seus poemas.

A sociedade seguiu seu rumo e o movimento romântico murchou como 'uma rosa entre os seios da doce amada adormecida em sonhos belos'. Somos ainda em parte produto daquela época, conquistas sociais, científicas e tecnológicas nos distanciam daqueles tempos, mas o ideal romântico ainda resiste. Assim como nos primórdios do romantismo, vez por outra surge alguém que - ao lado de românticos mais convencionais que exaltam o amor -  deseja mudanças a seu modo, vencendo forças contrárias, idéias estabelecidas, instituições caducas e opressoras, usando para atingir suas metas ideais muitas vezes subestimados, por não fazerem parte das 'regras do jogo' em questão. Na sociedade contemporânea temos um complicado sistema de interesses intimamente ligados entre si e é mais conveniente ficarmos resignados e seguirmos um padrão mais racional de conduta. Essa é uma explicação para a força e o encantamento causados pelo romântico que exaltado contesta valores,  expondo os seus ideais como um novo combustível para a mudança almejada.  

Muricy Ramalho pode negar seu romantismo, por não ser sentimental e ser excessivamente franco em suas posições no lucrativo mundo do futebol, mas ele é um destes exaltados que fascinam a muitos que provavelmente não teriam o mesmo fôlego para difundir seus ideais mais fervorosos. O técnico tetra-campeão brasileiro, com três títulos pelo São Paulo e um pelo Fluminense pode ser classificado como um romântico 'vitorioso' (isso porque geralmente os românticos não são valorizados prioritariamente por metas e sim pelas suas trajetórias, como Pelé que é pouco lembrado pelos títulos,  mas exaltado pela carreira brilhante). E para atingir sua mais recente meta, Muricy deu um passo atrás, recusando o cargo de técnico da seleção brasileira, num gesto que poderia ser classificado como insensato por um profissional carreirista. Entretanto, ele sabia de seus objetivos e com técnica, trabalho e a boa intuição traçou sua história e a de seu time. O despojamento característico de Muricy em entrevistas coletivas que causa espanto nos mais pragmáticos, foi esquecido com a sua coroação como técnico campeão de um  time conhecido há tempos atrás apenas por lutar para não ser rebaixado para a segunda divisão. Um feito que somente uma mente romântica e exaltada poderia imaginar e atingir. Esse  homem - romântico - sabe o que faz.

22 de nov. de 2010

O conto de fadas de um mundo sem encanto

O anúncio do casamento de William, príncipe da Grã-Bretanha e Kate Middleton,  colega de tempos de estudante,  foi prontamente associado à uma história familiar semelhante e que teve ampla repercussão na mídia - o casamento do príncipes Charles e Diana, pais do noivo. A união dos pais de William foi pautado por ingredientes que mais se assemelhavam a um relacionamento de pop-stars: o namoro com uma ex-babá e professora, o noivado, o casamento televisionado para um bilhão de telespectadores pelo mundo, as juras de amor eterno acompanhadas com emoção pelos súditos e público em geral que torciam pela felicidade do casal. Diana era adorada por sua singeleza, tinha um apelo popular que incomodava de certa forma a família real, mas  juntamente com Charles formavam um simpático casal que tinha tudo para dar certo. 

Entretanto toda a simbologia de encanto foi se apagando com as crises do casal - Charles tinha um relacionamento paralelo  com Camila Parker, com quem se casou em 2005; este e outros escândalos foram amplamente divulgadas pela imprensa, especialmente pelos tablóides sensacionalistas. Essas crises foram minando a relação e o casamento não se sustentou; já em 1992 estavam separados e a união acabou oficialmente em 1996, um ano antes do acidente fatal com Diana em Paris.  Finalmente terminava, de forma inesperada, uma história de amor contemporâneo que poderia ter acontecido  com  qualquer casal, mas com um elemento que alimentava o imaginário do público e ao mesmo tempo desestruturava a relação - a hiper-exposição na mídia.

Vivemos numa sociedade iconoclasta (do grego eikon=imagem + klaein = quebrar), ou seja, uma sociedade que 'quebra', ataca idéias ou instituições quaisquer que sejam. Após os protestos estudantis de maio de 1968 na França, o mundo e suas instituições foram com mais frequência postas sob contestação, num mecanismo frenético que se repete numa velocidade surpreendente. O casamento, como uma dessas instituições contestadas, vem sendo reinterpretado de sua forma original secular, com a propagação de novos ideais de relacionamento sugeridos como sendo viáveis no mundo contemporâneo. Esses ideais de comportamento são difundidos por sociólogos, historiadores, profissionais da área da saúde como psicólogos e psiquiatras que, em suas análises, propõem uma releitura nas estruturas sociais mais elementares  a começar pela família. A decretação, por parte destes profissionais, do fim do amor romântico, do casamento 'sob o mesmo teto',   são vistos como algo possível e inevitável, visto que numa sociedade que preza a individualidade a níveis extremos como a atual, a felicidade somente se dá quando o indivíduo se autorrealiza plenamente, ou seja, sozinho. E para a divulgação desses ideais, os seus defensores contam com a mídia, grande aliada e incontestavelmente um dos grandes referenciais iconoclastas, que vive de reinventar de tempos em tempos novas estratégias e novos produtos sejam elas comerciais ou culturais para alimentar o público e o mercado publicitário.

Por mais que se afirme que há - e com certeza há -  uma expectativa coletiva para que William e Kate sejam bem sucedidos nessa nova fase de suas vidas, não há também como negar que, como parte de uma estrutura política-midiática, eles correm o risco de terem a imagem  e o futuro casamento abalados pela mídia. Assim como artistas que veem na imprensa uma aliada-inimiga dependendo da necessidade e foco de interesses de ambas as partes, os noivos certamente serão capas de muitas capas de jornais e revistas e terão suas imagens divulgadas em programas em matérias que irão desde atividades corriqueiras até especulações e rumores que fazem a alegria sinistra dos súditos e do público em geral. A monarquia britânica tem sido especialista em protagonizar os piores momentos na mídia. A família real sabe que depende desta estratégia de mão dupla: a mídia britânica a divulga com material farto para suas matérias e a família de Elizabeth II  necessita de publicidade para manter a imagem e resistir aos tempos modernos e não perder a legitimidade. É um sistema de contrários.  William e Kate podem, se quiserem e utilizarem de inteligência, ser um novo marco nesse sistema, não se expondo em excesso, demonstrando transparência, prudência  nas ações do dia-a-dia e não caindo no jogo da mídia  destruidora de ideais e instituições. Se fizerem isso, certamente serão ícones do ideal de amor eterno e um referencial para aqueles que ainda acreditam que a vida a dois é algo possível.


Fonte:

13 de nov. de 2010

Monteiro Lobato é a cara do Brasil

Capa de "A Chave do Tamanho" de 1942,
livro de Monteiro Lobato (1882-1948)
Monteiro Lobato está em discussão. Não por suas campanhas a favor do petróleo ou polêmicas pessoais, mas por ter outra vez sua obra ligada às questões de racismo. O Conselho Nacional de Educação sugeriu ao Ministério da Educação a não distribuição do livro 'Caçadas de Pedrinho' por entender que a obra infantil tenha teor racista em certos trechos. O parecer foi redigido pela conselheira e professora Nilma Lino Gomes. Nesse debate houve acusações de 'porta-vozes' da oposição na mídia que esbravejaram alertando que estamos perto de um regime ditatorial onde a censura irá prevalecer. Houve também o clamor do pessoal do establishment com o já conhecido discurso do 'país cordial onde as diferenças são respeitadas' que adoram afirmar que não são racistas pois tem empregadas domésticas negras em casa e que elevador de serviço é um mal necessário (Sônia Travassos, professora da UFRJ disse que a censura do CNE é 'absurda', pois para ela 'a Tia Nastácia é querida por todos do Sítio, participa da vida social da família e tem espaço para expressar sua cultura').

A originalidade de Lobato em sua série de livros infantis ambientada no 'Sítio do Pica-Pau Amarelo' está em ir contra a corrente. Primeiro por ser pioneiro neste gênero ainda tão desprezado no Brasil. Segundo por ter entre seus personagens a 'causadora' da polêmica atual - Tia Nastácia, a empregada negra que inclusive foi protagonista de Lobato em 'Histórias de Tia Nastácia', livro onde ela conta histórias de vários lugares para as crianças do Sítio. Algo impensável, no país de Jorge Amado que em seu 'Capitães de Areia' elege Pedro Bala, o garoto loiro como líder do grupo de meninos infratores das ruas de Salvador.

Lobato viveu parte de sua vida quando o pensamento racista embasado em teorias científicas estava em alta, tendo esse pensamento justificado o ideal de superioridade racial. No Brasil após a destruição de Canudos na guerra de mesmo nome, o médico baiano Nina Rodrigues, estudioso das teorias racistas-científicas fez uma análise dos cérebros do líder Antônio Conselheiro e de alguns de seus seguidores para explicar o fanatismo e uma provável degeneração de raças, fato este narrado com ironia pelo jornalista Euclides da Cunha que acompanhou o desfecho da guerra no final do século 19. Esse pensamento de superioridade de raças difundiu-se por outras áreas, inclusive nas artes. A título de exemplo, temos a história de 'Tarzan', uma narrativa que tenta, difundir o ideal racista-científico: - um nobre inglês é abandonado na selva devido a morte de seus pais e é criado por macacos; mas mesmo na adversidade de um ambiente primitivo, tem a eugenia (melhoramento genético) a seu favor, levando para a selva a liderança e supremacia de sua raça. Nos quadrinhos, seguindo esta linha de pensamento, há a lenda do Fantasmaguardião branco que tem a missão de proteger e defender a selva.

Nesta atmosfera estava Lobato com sua Tia Nastácia protaganizando histórias de modo inédito para uma personagem negra. Evidente que a composição é estereotipada, pois o próprio Lobato foi influenciado por autores racistas. Porém, mesmo com essas influências, Lobato dá mostras de tentar buscar a identidade escondida num ambien
te de não aceitação de nossa miscigenação, na eugenia racial proposta no incentivo imigratório europeu do séculos 19 e 20. Além da protagonista negra Tia Nastácia, temos um marco desta busca do autor - o conto Negrinha, que dá nome a um livro homônimo. Nele Lobato narra de forma comovente, toda a tragetória de uma garotinha negra explorada por uma senhora religiosamente hipócrita, mas que não tinha compaixão. Negrinha trabalhava exaustivamente na casa da 'sinhá' sem direito a ser criança. Quando as netas da patroa aparecem com uma boneca, o brinquedo nunca visto pela protagonista a faz sonhar com um mundo fantasioso a qual nunca teve direito. A tragédia final e prevista devido aos maus tratos sofridos por Negrinha representa um alerta do autor da exploração e das injustiças sofridas pelos negros no país, um tema tão contemporâneo.

Monteiro Lobato é um reflexo do contraditório que nos guia desde a fundação do Brasil até hoje: o país tido como especial de uma população gentil e cordial mas que protagoniza uma sociedade
com os maiores índices de desrespeito aos direitos humanos. Uma civilização onde judeus e árabes podem conversar tranquilamente pela rua, mas que ainda pratica linchamentos; uma nação entre as mais ricas do mundo, mas que tem índices de desenvolvimento humano semelhantes a países mais que subdesenvolvidos. No pais das contradições é impossível tentar entender Lobato sem uma auto-crítica, coisa tão rara por aqui. Nem a retirada de circulação do livro "Caçadas de Pedrinho' na rede pública (ou qualquer outro que seja), tampouco sua exaltação sem ressalvas alegando nossa demagógica 'democracia racial' são necessárias. O caminho a seguir é o mesmo aberto pelo escritor de Taubaté - de tentar compreender a nós mesmos, difundindo idéias para que alcancemos as respostas, revendo conceitos, questionando interesses menores, mesmo para isso tenhamos que correr riscos pelo atrevimento de irmos contra um sistema perverso e opressor.

6 de nov. de 2010

Uma mulher para arrumar a casa

A eleição da primeira mulher presidente da República é algo notável, principalmente quando estamos adiante de países desenvolvidos como Estados Unidos, França e outros da Europa que ainda não tiveram chefes de Estado mulheres. E é  mais notável ainda quando mesmo antes da sua posse, o nome de Dilma Rousseff já criou frisson entre as feministas, sexistas e a turma do 'exótico por natureza' que com seus discursos exaltados, suas brados históricos, suas frases lapidares nos deixam constrangidos e desmontam o ideal de progressismo que a eleição de uma mulher presidente pode trazer.

As feministas em particular, que pareciam sossegadas com seus textos contra o patriarcado, contra o serviço doméstico, contra os salários maiores dos homens em relação aos das mulheres, a favor do domínio irrestrito do corpo,  ressurgiram do sono profundo. Dilma, numa situação inesperada,  foi vítima da patrulha ideológica de suas próprias companheiras de partido. Numa plenária nacional de mulheres do PT uma de suas 'companheiras', Sueli de Oliveira, saiu-se com a observação: "Quando Dilma diz: “Nós, mulheres, nascemos com o sentimento de cuidar, amparar e proteger. Somos imbatíveis na defesa de nossos filhos e de nossa família”, valorizando estas funções como grande qualidade das mulheres, ela colabora com os valores do patriarcado e dos fundamentalistas na defesa de que lugar de mulher é na casa, no lar e na família".

Este é um exemplo da originalidade do pensamento feminista contemporâneo. E parece que vem mais por aí. Mas deve-se ressaltar que por mais que feministas e congêneres esperneiem, difundindo uma simbologia sexista nesta disputa eleitoral na qual Dilma saiu vitoriosa, houve nessa disputa algo inverso ao ideal daquelas que exigem de modo precário, o igualitarismo de gêneros. Basta observar a trajetória política recente de Dilma Rousseff - chamada para assumir a Chefia da Casa Civil num período de crise, criou uma relação de confiança com o presidente Lula e assim se estabeleceu a estrutura para uma possível sucessão ao fim do mandato do presidente-operário. Houve dentro desse processo muita crítica míope, mais por causa de incompetência da oposição do que por limitações da ministra preferida de Lula. Claro que limitações, Dilma tem, mas tem se empenhado e os resultados são visíveis: um melhor diálogo e uma melhor desenvoltura - apesar de ainda pecar nos jargões econômicos - e o sucesso na reorganização da imagem de 'durona' que foi abrandada.

Porém o mais importante é a simbologia de harmonização entre os dois sexos vista na relação entre Lula e Dilma; é impossível não notar nos discursos a cumplicidade entre os dois, algo até mesmo raro entre relações matrimoniais. A troca de olhares que mostravam confiança, a sintonia entre eles, o respeito mútuo. Lula confiou em Dilma e ela confiou nele, sem melindres ou egocentrismos. E para isso, não foi preciso o hasteamento de bandeiras narcisistas ou o discurso preconceituoso-sem-querer-ser do tipo 'ela trará um toque de sensibilidade ao governo...' (isso faz lembrar da ex-prefeita e ícone feminista Marta Suplicy e seu Projeto Belezura que plantava coqueiros em bairros chiques, enquanto os bairros não nobres afundavam nas enchentes). Todo este processo talvez provoque incômodo na turma dos ideais fumegantes, das burocratas do pensamento feminista - professoras de sociologia e de humanas, diretoras de ONGs que mamam gostosas verbas públicas para vislumbrar o vazio e descrevê-lo como quem diz algo substancialmente importante.

Enfim, parece que Dilma não fez e não deverá fazer coro com 'as companheiras'. Dilma talvez não aguentasse dez minutos de conversa com Betty Friedan (a papisa do feminismo), acharia a messiânica dona de casa que livrou as mulheres do jugo machista uma desvairada a procura de platéia. A futura presidente pediria licença da conversa, indo fazer o que mais sabe fazer - tratar de assuntos de que domina, dando o melhor de si, sem preocupar-se com bordões e panfletagens que não indicam um caminho, uma saída. Iria mostrar serviço, honrar o voto de confiança de mulheres, homens, jovens, gente que sente no dia-a-dia a necessidade de se construir um país melhor, distribuir a renda, observar os gastos. Resumindo, pôr a casa em ordem. Esperamos que a futura presidente utilize seus conhecimentos da área econômica e saiba cuidar do orçamento 'da casa de quase  190 milhões de habitantes', para desespero das feministas, mais preocupadas com o discurso 'socialista-Channel' e a retórica de degradação das relações de gênero.


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