19 de fev. de 2011

A viagem infindável de Gulliver

Um dos lançamentos deste verão nos cinemas é o filme “As viagens de Gulliver”, baseado no livro homônimo do irlandês Jonathan Swift (1667-1745). O filme é uma releitura de alguns trechos do livro com uma linguagem moderna e mais atrativa para o público jovem e adolescente. O que parece normal, visto que a obra sempre foi associada a um mundo - ou mundos - fantásticos, surreais, numa narrativa surpreendente do início ao fim. George Orwell, atuor de A revolução dos bichos e 1984 disse ser "impossível se cansar dele"; Orwell afirmou ainda: "Se eu tivesse que fazer uma lista com os seis livros que deveriam ser preservados quando todos os demais fossem destruídos, com certeza colocaria As Viagens de Gulliver nela". Com este aval do grande escritor inglês, o livro de Swift faz por merecer seu prestígio e suas idéias que continuam atuais.

Nele o protagonista viajante Lemuel Gulliver narra suas aventuras pelo mundo (detalhe para o nome Gulliver que vem de gullible que em inglês significa crédulo e talvez a credulidade seja um ingrediente indispensável para ter um contato  mais profundo com outros povos e suas culturas). O texto é cheio de descrições referentes aos países por onde Gulliver passa, não apenas externas, mas com deduções do caráter dos habitantes que o narrador faz questão de expor. Em cada parada, há um povo com suas peculiaridades, tanto de caráter quanto em seu aspecto físico, indo desde gigantes, criaturas em forma humana minúsculas, passando pelos habitantes da ilha flutuante até chegar à terra dos cavalos falantes. E o mais impressionante é que todo esse universo de estranheza que parece algo distante, uma realidade de outra dimensão, não é nada mais nada menos do que o reflexo da nossa própria realidade humana, inclusive a contemporânea.

O pastor Jonathan Swift nasceu num período conturbado da história da Inglaterra que estendia seus domínios sobre a Irlanda. A preocupação primordial dele era contra a injustiça, a impiedade. Ele queria criticar as instituições e referenciais da elite de então. Teve relações com o poder e conhecia todas as artimanhas que circundavam os donos do mundo com suas hipocrisias, suas pompas, sua burocracia e indiferença para com o cidadão. Parece bastante pretensão para um livro que sempre é citado como um 'livro para crianças', devido à linguagem fluente, a descrição minuciosa, além do humor que As Viagens de Gulliver traz. 

Como recurso para descrever as injustiças de seu tempo, as incongruência do que é dito nos gabinetes e o que é praticado de verdade na vida pública, a cegueira da sociedade, Swift usou uma estratégia - escrever um livro com formato de livro de viagens (esses eram moda então). Cada país onde o capitão Gulliver para não é senão o próprio país de Swift e suas complexidades; para nomear seus lugares imaginários, Swift usou nomes codificados para dificultar a identificação com situações, lugares e pessoas de seu tempo, o que lhe causaria problemas se o fizesse de forma direta. Liliput (a terra dos habitantes minúsculos) é um referencial à pequenez de caráter de homens opressores e demagogos. Brobdingnag, é o lugar onde ocorre o inverso de Liliput - ali ele é o minúsculo, sendo manipulado pelos habitantes do lugar como se fosse um fantoche, carregado de um lado para outro dentro de uma caixa. 

Prosseguindo sua viagem, Gulliver chega à Laputa, a ilha flutuante dos pensadores, músicos e cientistas, onde só é possível chegar através de uma corda pendurada. Talvez Laputa se refira à Inglaterra, que dominava a Irlanda de Swift, causando-lhe empobrecimento pela cobrança de impostos - daí Laputa seria literalmente 'uma prostituta que arranca dinheiro alheio'. Em Laputa, os sábios são acompanhados por auxiliares que utilizam uma bexiga com pedrinhas dentro amarrada numa vara, que é chacoalhada toda vez que alguém se dirige a um destes sábios. Uma crítica impiedosa aos cientistas de então - e porque não a certos contemporâneos também  - com sua falta de visão ampla, com seu orgulho e desejo de prestígio,  com seu desdém para com os ramos de conhecimento que sejam diferentes dos seus. 

Em sua fase final, Gulliver relata a viagem à terra dos houyhnhnms (a pronúncia provável seria whinnims, imitando o relinchar eqüino), os cavalos filósofos. Gulliver fica admirado com sua inteligência, contrastando com a ignorância dos yahoos, seres descritos como semelhantes a homens, mas como corpo cheios de pelos e comportamento animalesco. Alguns autores associam os houyhnhnms a filósofos estóicos (o estoicismo prega a serenidade, a razão sobrepujando os sofrimentos do mundo); essa conclusão vem por causa da aversão de Swift ao estoicismo, sendo uma forma de ridicularizá-lo associando seus adeptos a  quadrúpedes inteligentes em seu livro. 

Todos esses lugares fantásticos, criados por Swift,  de habitantes impossíveis em situações surreais eram senão os próprios humanos e suas atitudes inconseqüentes e incoerentes de seu próprio país. Para realizar sua obra, o autor levou  a imaginação para outros lugares, num exercício de reflexão sobre seu tempo que perdurou com o passar dos anos. Isso porque continuamos nos mesmos erros do tempo de Swift e apesar dos avanços incontáveis nos diversos ramos do conhecimento humano, parece que regredimos em alguns aspectos; já em outras áreas nunca avançamos satisfatoriamente. Conhecer o mundo de Gulliver e seus personagens é viajar dentro de nós mesmos, num mundo que parece alheio, mas que é reconhecido no menor gesto ou pensamento de cada um de seus personagens.

Fontes:
As Viagens de Gulliver, Jonathan Swift, Nova Cultural, São Paulo, 1996